domingo, 27 de novembro de 2022

4am

Não importa a hora. A qualquer minuto do dia, eu sempre estarei escrevendo. Não importa onde, até porque eu escrevo linhas que não serão lidas e que, por isso, não precisam ser encontradas. 

É como fechar os olhos e continuar enxergando o mundo, mas através de outro sentido que não a visão. Penso, então, que talvez a escrita seja, na verdade, o meu sexto (ou sétimo?) sentido. E, assim como eu não posso exigir que uma pessoa sem visão enxergue qualquer coisa que eu queira mostrar, talvez também não possa exigir que qualquer pessoa alcance o que eu escrevo. 

Mas, também talvez, o que mais me faz falta não sejam bem “leitores”, porque, como eu disse, eu escrevo linhas que não precisam ser lidas. O que me faz falta é encontrar outros escritores. Outras pessoas que sentem essa profunda inquietação na alma, porque têm todos os seus sentidos tão aguçados que são também capazes de me fazer sentir através deles… e isso se extravasa até as pontas dos dedos. 

No fundo, acho que todos nascemos com essa habilidade, mas o mundo se faz tão egoisticamente denso que, por vezes, estamos tão submersos procurando fortunas das quais não precisamos, que esquecemos de olhar pra dentro. E quem não olha para dentro de si, nunca será capaz de igualmente olhar para dentro do outro. 

domingo, 24 de julho de 2022

Solilóquio Algarvio

Engraçado não sentir que estive há mais de 1 ano inteiro sem publicar qualquer novo monólogo por aqui. Engraçado e também um pouco triste, porque simplesmente não me dei conta do fato. A verdade é que os dias têm sido intensos (e bem vividos!), e percebo que me sobram cada vez menos horas ao final deles para um dos meus passatempos prediletos: organizar ideias em palavras.

Entretanto, hoje não vim aqui para satisfazer minha humana necessidade de reclamar da vida. Hoje eu vim contar a história por trás desta foto (e estava realmente ansiosa por isso):

Há umas 2 semanas, percebi que precisava de algumas férias e fui visitar a cidade de Lagos, onde se localizam algumas das belíssimas praias algarvias de Portugal. Selecionei 3 dias de descanso no trabalho e parti no domingo. O plano era fazer o que eu já não conseguia mais colocar em prática desde 2019: viajar sozinha.

Como eu adoro viajar só!!! Nunca havia entendido essa necessidade quase visceral de estar unicamente em minha companhia. Mas, ano passado, conheci um francês que me recomendou um bom livro: “Quiet: the Power of Introverts in a World That Can't Stop Talking”, escrito por Susan Cain. Era um daqueles dates em que você presta bastante atenção em cada movimento do outro, porque parece que há ali qualquer coisa interessante a ser descoberta (e houve: autoconhecimento). 

Ele perguntou se eu me definia como introvertida ou extrovertida. Eu já era acostumada a refletir sobre respostas a essa pergunta, já que notava que as pessoas constantemente me atribuíam características que eu não reconhecia em mim mesma. No fundo, acho que era uma espécie de autodefesa, como se o termo “Introversão” tivesse uma carga deletéria que eu não quisesse transportar comigo, mas o adjetivo “Extrovertida” também não fosse suficientemente bom para me descrever. Então, sempre me defini como “uma pessoa extrovertida introspectiva”. Sentia que socializava bem com outros indivíduos, fazia amigos com facilidade, mas havia ali sempre uma timidez, um desinteresse ou um olhar voltado para dentro, que invariavelmente exigia de mim uns momentos a sós, uma longa conversa comigo mesma... 

Acabei descobrindo, com a leitura que me foi recomendada, que a Extroversão (ou a Introversão) não é um simples substantivo que pode nos servir de base para sair por aí qualificando ou desqualificando pessoas, mas uma atitude, um traço comportamental, um conceito da Psicologia, cunhado por Carl Jung; que, diferentemente do sentido que assumiu ao se popularizar, tem condições muito bem definidas para se atribuir ou não aos indivíduos na sua caracterização.

Uma pessoa introvertida, segundo a autora de Quiet, é alguém que exibe um comportamento mais voltado para si do que para o exterior e que, por isso, em linhas muito simples, recarrega as suas baterias quando está sozinha. Os introvertidos podem ser bastante sociáveis, porque desenvolveram essa capacidade (não é tão difícil olhar para dentro do outro quando já se sabe olhar para dentro de si, né?!), encontrando um equilíbrio entre sua personalidade e sua necessidade humana inata de se relacionar; mas é, de fato, na solitude que eles encontram descanso. 

Não pretendo me embrenhar hoje no conteúdo do livro (que, inclusive, tem um background muito mais profissional e corporativo do que tenho feito soar aqui na minha reflexão), porque quero evitar grandes fugas ao tema sobre o qual me propus a escrever, mas recomendo a leitura, sobretudo para aqueles que, assim como meu antigo eu, associam qualquer carga negativa ao conceito de Introversão. É um exercício libertador de aceitação passar a abraçar os seus próprios traços comportamentais e aprender a utilizá-los para potencializar resultados! A questão final é que hoje percebo que sou uma pessoa introvertida, introspectiva e com grande capacidade de socialização; o que induz muita gente ao erro quando tenta me definir. E é essa socialização (e uma pitada de FOMO?) que, algumas vezes, drena a minha energia vital e me faz sentir totalmente consumida.

Foi nesse contexto, de cansaço físico e mental, e bateria social esgotada, depois 3 semanas de muito trabalho (tenho dado Training à minha equipe, e isso tem sido uma experiência tão incrível quanto exaustiva para mim) e de muitas festas juninas nos famosos “Santos Populares”, que decidi que definitivamente precisava de uma pausa, e, para essa pausa, eu tinha duas exigências: estar longe de Lisboa e estar sozinha. Planejei tudo e fiz as reservas em 24h, sem fazer muitas contas, confesso. Já conhecia Lagos, estive lá 2 vezes no ano passado, mas ainda não tinha explorado tão bem todas as praias e trilhas, porque estive sempre acompanhada, e é difícil conciliar a vontade de todo mundo quando se viaja entre amigos.

Das praias que já visitei no Algarve (que ainda não foram muitas), Lagos continua sendo a minha número 1, porque me proporciona tanto a sua versão agitada e povoada por turistas, com uma vista deslumbrante de uma costa com relevo alto e acidentado, nas famosas praias da Ponta da Piedade; quanto a calmaria de uma planície de areias finas e marzinho sem gente e sem ondas, na chamada Meia Praia. Eu estava pronta para explorar melhor tudo isso, do meu jeito, no meu tempo, sem precisar ajustar a minha vontade, expectativa e os meus horários aos de mais ninguém.

Foi assim que o meu segundo dia em Lagos amanheceu um pouco nublado, e eu tomei a minha câmera nas mãos depois do café da manhã, para sair fotografando o centro e a marina, já que o banho de mar ficaria para mais tarde. Meu objetivo era prestar mais atenção a uma construção medieval que eu havia descoberto no dia anterior: o Castelo de Lagos. Sigo em direção à Avenida dos Descobrimentos e chego a uma igreja engraçadinha, onde o diabo indubitavelmente jamais entraria; não só porque a paz dali se confunde com a forte sensação de uma presença superior e divina, mas porque a imagem das palmeiras na porção final daquela foz é um convite incontornável a permanecer ao ar livre. Não se ousa renunciar. Sigo hereticamente em direção à água, e lá eu vejo o farol verde do outro lado da foz.

Há um homem ali sozinho pescando. Ele e somente ele. A faixa de areia mais ocidental da Meia Praia, até onde vai o meu horizonte, também está esvaziada, as nuvens e o vento não são tão sedutores para mergulhos àquela hora da manhã, mas a promessa é de céu aberto à tarde: tudo é favorável para o passeio. Checo no Google, e o caminho sugerido é uma piada: teria que contar com um milagre para caminhar sobre as águas (primeira imagem do Maps). Traçando outra rota, que eu já previa como única possível, estaria pertinho do farol em uns 30 minutos (segunda imagem do Maps).

A realidade, entretanto, quando se tem uma câmera na mão e muita vontade de fotografar, é (e foi) muito mais demorada que isso, já que sou uma pessoa de deslumbre fácil; mas consigo finalmente chegar aos arredores do farol do lado leste. Estou quase lá! É aí, então, que eu percebo que o pior ainda estava por vir hahaha o caminho da faixa de areia na beira-mar até o farol era, na verdade, uma extensa linha estreita composta por enormes rochas sobrepostas, que agora tornavam a aventura um bocadinho perigosa… não era permitido escorregar ou cair dali. O estrago seria grande, sobretudo para a câmera que tinha nas mãos. Pensei em ficar por ali mesmo, a uma distância segura, mas é claro que isto não aconteceu.

Subi na primeira rocha que me parecia plana, escalei entre as outras e comecei o percurso pedregoso, avançando lentamente, uma rocha após a outra. Mantinha a câmera segura dentro da bolsa, assim como o celular, para evitar distrações e desastres que saíssem mais caros do que uns ossos quebrados, e, de tempos em tempos, parava num ponto firme e espaçoso para fotografar: céu abrindo, o dia já estava azul!

Reparei que, apesar de saber onde estava o farol onde eu queria chegar, eu precisava mesmo me concentrar em cada rocha na qual eu colocava meu pé. O deslocamento era lento, mas existia e, pouco a pouco, eu avançava na direção desejada. Em alguns momentos, escolhia um caminho de pedras que acabava me deixando ilhada, porque não havia mais rochas planas e seguras para avançar: era preciso retornar para a pedra anterior, e assim escolher uma nova rota, para conseguir ir mais longe. 

Foi aí que comecei a refletir sobre como aquela caminhada e seus obstáculos reproduziam o que eu constantemente experiencio na vida: cada passinho que eu dou, por menor que seja, e por mais tempo que leve, aproxima-me do meu objetivo final, do farol no qual estou incansavelmente tentando chegar. Às vezes, não tenho tanta certeza sequer de que farol é esse e do que ele representa no fim da minha jornada, então, parece difícil escolher e me concentrar na próxima rocha em que vou descansar meu pé; mas nós todos sempre temos consciência, ainda que por instinto, da direção que nos leva até lá. E, sinceramente, mais importante do que saber onde chegar é saber em que sentido caminhar. E isso eu sempre sei.

Em todo o caso, de nada adiantaria ter os olhos sempre focados no farol, se a caminhada exige minha atenção e alerta constantes na estrada, no deslocamento a curto prazo, nos pequenos obstáculos que vão surgindo e que precisam ser contornados ou enfrentados. Eu devo, sim, ter em mente onde eu quero chegar, onde está o meu farol, isso nos serve de motivação; mas é no hoje que eu preciso me concentrar se realmente quiser avançar em algum sentido. Às vezes, vai ser preciso parar para descansar um pouquinho, vai fazer bem uma pausa para apreciar a beleza do que está em volta, ou para comemorar o avanço que já foi alcançado. Às vezes, também vai ser preciso parar para melhorar a estratégia, para perceber que cheguei a um ponto em que não é mais viável avançar sem correr um grande risco de me machucar, e ali decidir se arrisco um salto, ou se dou 1 ou 2 passos para trás, e recalculo a rota...

E, no meio desse emaranhado de pensamentos e reflexões, percebo que um senhor baixinho, de cabelos todos brancos e balde na mão se aproxima. É o senhor da primeira foto deste post. Ele vem andando em minha direção com uma agilidade que me impressiona, e, em poucos segundos, ultrapassa a minha posição e já está à minha frente, dirigindo-se, sem grande esforço aparente, à companhia do seu colega de pesca que já se encontrava lá quando as nuvens ainda cobriam o sol, na metade do caminho até o farol. Eu começo a questionar a real dificuldade e grau de esforço que aquele caminho de pedras impõe, de fato, a quem se aventura a pescar ou passear por ali... Será que estou assim em tão má forma física? Será que estou fazendo pausas demais, ao invés de avançar com maior objetividade e chegar no farol mais depressa? Calma, mas por que eu deveria ter pressa, afinal? Isso não é uma competição.

É aí que volto a refletir. Aquele senhor tem algo que eu ainda não tenho: experiência. É fácil para ele saber onde pisar e não ter medo de o fazer, porque já se sente à vontade e familiarizado com aquela estrada de pedras. E eu não posso, nem devo, diminuir ou questionar a minha jornada, tampouco querer alterá-la ou apressá-la, para acompanhá-lo ou ultrapassá-lo; porque nenhum de nós está competindo com o outro. Não há demérito em caminhar de forma lenta e prudente, e eu tenho que ser paciente, avançar no meu ritmo, manter a velocidade que melhor se adequa à minha experiência e à forma como desejo vivenciá-la. Estamos todos nesse planeta dividindo as mesmas estradas, compartilhando momentos durante as nossas caminhadas e devemos aproveitar esses encontros, por mais breves que sejam, para aprender e ensinar, trocar experiências que nos ajudem a encontrar o nosso sentido; não para cair no vórtex de um esforço comparativo inútil e despropositado que nos coloca rumo a destinos que não são verdadeiramente nossos. 

Continuo a minha caminhada. Em algum momento, paro para fotografar aquele senhor, que já está pescando com seu companheiro, e me vejo cada vez mais perto do farol. Chego, finalmente, ao meu destino. E me sinto tão realizada! Tiro tantas fotos quanto eu tenho vontade; aquele ângulo torna Lagos ainda mais bonita. Sento-me com os pés já descalços, o Sol agora está alto o suficiente para fazer minhas costas arderem, mas a brisa marinha é absolutamente refrescante. Estou sozinha e tenho nos fones uma peça de Ludovico Einaudi que me faz querer dançar como se ninguém fosse capaz de me enxergar. Meus únicos espectadores, na verdade, são as pessoas que passam de barco, saindo ou chegando do Oceano Atlântico. Tudo o que eles veem é uma garota de maiô preto e chapéu, sozinha ao lado de um farol verde. Eu, entretanto, vejo uma pessoa que acaba de encontrar um novo sentido nas experiências de vida que passará a ter dali em diante. Ela comemora, porque sabe que ainda está à metade de sua viagem, em plena segunda-feira, mas já encontrou o que foi buscar no Algarve

A história acaba aqui, ilusoriamente como se o farol fosse o meu "e viveu feliz para sempre". Mas dali, eu desci pedras abaixo de volta para a Meia Praia e aproveitei um dos mergulhos mais gelados e agradáveis que já tive em Portugal. Ainda estive em Lagos por outro dia e meio, retornei a Lisboa e, na sequência, ao trabalho. 

Parece que nada mudou realmente, mas me sinto muito mais preparada para a ideia de que posso ter vários objetivos, porque eles não são fins em si mesmos; como posso também mudar de objetivo quando o dia amanhecer nublado, e receber da vida uma surpresa agradável. E não há demérito nisso. Posso começar meu texto no Presente, e decidir oscilar a minha escrita, ao longo dos parágrafos, entre aquele tempo e outros modos do Pretérito; e ninguém vai ser capaz de julgar a minha estética textual se eu não me permitir ser julgada/comparada. Posso absolutamente tudo, e eu sou a única pessoa que sabe onde eu quero chegar (ainda que esse destino seja plenamente mutável) e qual o caminho e as companhias que fazem sentido no meu trajeto até lá. Conheci um Budista nessa viagem, e toda a minha reflexão sobre focar em cada pedra, em cada "hoje", parece estar validada naquela Filosofia, mas ainda preciso ler um pouco para entender melhor. 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

“And inside the peach there's a stone”

“While he writes, I feel as if he is drawing me; or not drawing me, drawing on me — drawing on my skin — not with the pencil he is using, but with an old-fashioned goose pen, and not with the quill end but with the feather end. As if hundreds of butterflies have settled all over my face, and are softly opening and closing their wings. 

But underneath that is another feeling, a feeling of being wide-eyed awake and watchful. It's like being wakened suddenly in the middle of the night, by a hand over your face, and you sit up with your heart going fast, and no one is there. And underneath that is another feeling still, a feeling like being torn open; not like a body of flesh, it is not painful as such, but like a peach; and not even torn open, but ripe and splitting open of its own accord.


And inside the peach there's a stone.”


Lembro-me do dia em que me deparei com essas palavras atribuídas a Margaret Atwood, e do instantâneo estalar que elas me causaram. Não que eu estivesse vivendo qualquer cenário semelhante naquela altura, qualquer sensação de estar sendo analisada (ou desenhada) por alguém; mas a intensidade das palavras e a forma penetrante como, ao final delas, Grace desnuda uma pedra dentro de si, fizeram-se desconfortavelmente familiares para mim


Recentemente, entretanto, senti-me assim: sistematicamente analisada. Não como alguém que se quer avaliar e chegar ao âmago, mas como alguém que se quer desenhar, que se quer pintar, por algum vão passatempo. E há várias maneiras de se pintar, por isso são poucos os artistas cuja técnica eficiente e suficientemente captura essências. A esmagadora maioria se limita à capa, sobretudo porque é apenas isso que se quer representar/projetar na obra, com perfeição e fidelidade ao que se vê no mundo objetivo. O que se busca, na verdade, é impressionar.


Aqui eu abro um parêntese mental para pensar em um microscópio eletrônico de varredura… É engraçado como as pessoas querem descobrir o que elas não conseguem ver através da potencialização do sentido da visão apenas. Técnicas e tecnologias são constantemente desenvolvidas, por cientistas, artistas, ou simplesmente toda a sorte de Tomés desse mundo, para se conseguir chegar às “nanoescalas”; como se aquele sentido (da visão) fosse o único capaz de enxergar.


E, por muitos anos, isso me gerou um incômodo tal que só há pouco tempo eu consegui compreender: o incômodo de perceber que, para algumas pessoas, a arte sempre será puramente estética; o incômodo de me sentir por elas sumarizada, resumida, superficialmente (ainda que delicadamente) analisada. 


Às vezes, simplesmente só se deseja enxergar o raso mesmo: falta vontade. Noutras, ainda que haja intenção de enxergar mais além, não se emprega a energia correta e necessária: falta técnica. E, em mais algumas, está-se tão distraído e assoberbado pela sua própria imagem, ou por outras imagens que se encontram já fortemente rascunhadas na mente, que os olhos e todos os demais sentidos traem o instinto da busca e fazem o artista se enganar: falta aqui autoconhecimento. Só se é capaz de pintar a essência do outro quando se conhece verdadeiramente a própria essência, porque apenas assim é possível não confundir o que se vê em si com o que se vê/busca na outra pessoa. Acredito que esta última tenha sido a principal falha do artista mais recente que tentou me debulhar; ainda que eu perceba todas as 3 presentes. 


E lá está: por mais intensa que seja a energia/vontade usada para rasgar e abrir a carne desse pêssego que se deseja pintar-analisar, dentro dele há ainda, sim, uma pedra. Irremovível. Que, por sua vez, demanda ainda mais empenho para se conhecer o interior. Entretanto, embora aquilo já seja suficientemente dilacerante de  se admitir, esta é que foi a minha conclusão mais recente: sinto que as pessoas esperam de mim o oposto do que lhes apresento. Elas querem a pedra por fora, e o desafio previsível de encontrar o pêssego dentro dessa cápsula quase impenetrável. 


E, como se sabe, quando se foge do que é expectável, bem como quando se retira do outro a possibilidade de sentir-se desafiado para chegar ao pêssego, curtir o próprio pêssego se torna desinteressante, como se nada mais houvesse a descobrir ali dentro; ou se torna assustador, como se não se soubesse bem o que esperar à frente, já que aquela, teoricamente, era a surpresa. E assim voltamos para a ilusão de já se conhecer algo completamente desconhecido, por mera falta de autoconhecimento. 


E foi assim, analisando/desenhando alguém que tentava me analisar/desenhar, que eu percebi as falhas do outro que eu não queria cometer na minha própria pintura, e quis eliminar do meu repertório a 3ª falta que mencionei lá em cima (a mais difícil de sanar, diga-se de passagem), e não somente esperar que o outro eliminasse do dele. Comecei a fazer uma terapia e, ainda que já tenha largado aquela obra de maneira inacabada, continua fazendo sentido para mim estar agora buscando conhecer melhor a mim mesma com pensamentos mais bem direcionados. Sinto gratidão ao pensar que tudo isto começou porque eu amo a Arte, e todas as respostas que ela ainda tem para me dar! 

domingo, 7 de março de 2021

10 anos de Debatedeira

Foto comemorativa meramente ilustrativa (2018).
Em Jan/2021, também comemorei 3 anos de formada.

Parafraseando Boaventura de Sousa Santos, na obra Pela Mão de Alice, se todos os desafios nascem de perplexidades produtivas, exercitar as nossas perplexidades torna-se, portanto, fundamental para identificar os desafios que merecem respostas. Quando criei este blog em 2011 (e até muito recentemente), eu acreditava que a escrita era a melhor e talvez a única maneira de realizar tal exercício e de encontrar todas as respostas demandadas pelos desafios resultantes. Precisei de 10 anos para me descobrir equivocada. 

Assim, em 07 de janeiro deste ano, o Debatedeira completou a sua primeira década de existência, e, em meio às adiadas promessas diárias de um post de aniversário, após um 2020 de apenas dois textos publicados aqui (e de um artigo publicado pela Almedina em Portugal - ihuuul!!!), passei a praticar umas sessões de auto questionamento, tentando projetar e compreender o porquê de eu não estar conseguindo escrever. É evidente que a pandemia modificou muita coisa em todo o Mundo, mas eu estava relutante em admitir que a minha capacidade de transcrever pensamentos em palavras pudesse ter sido mortalmente atingida por essa ogiva de insalubridade criativa que o ano passado lançou sobre nós

Eu que, por tantas vezes, desejei o ócio em 2019 (como já tenho desejado este ano também), vi-me presa a ele (sozinha) numa casa durante quase 4 meses inteiros de 2020, descobrindo seus efeitos supostamente deletérios e irreversíveis quando forçadamente imposto ao civil. Entretanto, e muito entretanto, ao final desse matrimônio arranjado pelo coronavírus, percebi que estive sempre enganada; sobre tudo. 

Primeiramente, a experiência com o ócio não me retirou a capacidade de pensar, de sentir, de refletir ou mesmo de escrever, ela me subtraiu a vontade de publicar o que eu produzo mentalmente, de compartilhar as minhas perplexidades com outras mentes, de socializar as minhas opiniões. 2020 foi o ano em que eu mais me dediquei a analisar o mundo material e imaterial ao meu redor, num esforço etnográfico de encontrar respostas aos desafios pelos quais estive passando. Conheci, inclusive, algumas pessoas que me fizeram ruminar sobre quem eu não quero ser, sobre as dúvidas que eu não quero ter, sobre as ansiedades que eu não quero causar. Percebi que, quanto mais me volto para o Mundo, mais me descubro voltada para mim mesma, para me consertar; mas que a recíproca não é verdadeira.

E, quando eu digo que a recíproca não é verdadeira, quero mesmo intencionalmente criar uma ambiguidade para fazer referência a duas constatações: ao contrário da colocação anterior, quanto mais me volto para mim mesma, não me volto mais para o Mundo, eu permaneço em mim apenas; e, estar voltada para o Mundo não é uma garantia de que o Mundo também estará voltado para mim. E esta última parte ficou tão cristalina durante as minhas quarentenas (contando com o meu isolamento profilático obrigatório em outubro e este novo lockdown 2020.1, já se somam 3), mas eu não sou capaz de julgar: descobri que o egoísmo é um instinto de sobrevivência

Dando seguimento, percebo que essa apatia quanto à socialização de ideias e ideais parte também de uma crise de gestão de pensamentos: a partir do processo de clivagem através do qual as reflexões se tornaram gradualmente muito numerosas na minha cabeça, tornou-se cada vez mais difícil/impossível geri-las, organizá-las e esquematizá-las todas. Por que eu iria querer investir todo esse esforço para escrever tanta, TANTA, coisa aqui? Tenho pelo menos umas 40 notas abertas no meu smartphone, com raciocínios, frases ou parágrafos de pensamentos eventualmente construídos porém não plenamente transcritos. E, nessas alturas, isso tem me bastado como exercício das minhas perplexidades.

Por fim, descobri na Quarentena outros prazeres e hobbies que eu não costumava ter: voltei a pintar (agora em aquarela, porque o volume de materiais é bem menor), passei a cultivar plantas (já estou a mulher-samambaia), comecei a trabalhar (estou há 9 meses trabalhando com compliance de regulações financeiras, e me considero bastante workaholic), e até a assistir a filmes e séries... Sinto que encontrei outras formas de canalizar e exercitar produtivamente as minhas perplexidades. A escrita continua sendo minha grande paixão, mas aprendi a ter outros affairs.

Por que razão, então, eu vim hoje assim tão out of the blue escrever algumas linhas depois dessa longa ausência não sentida, com 2 meses de atraso do decenário do blog? Por motivos egoísticos e acadêmicos: ao contrário da minha experiência pessoal com o exterior, que admite simples Notas ou aquarelas e que não se sujeita a avaliações, a minha dissertação de Mestrado precisa ser escrita, e bem escrita; o que me coloca em posição de exercitar tanto quanto necessário o meu poder descritivo. Certamente, meus textos voltaram para ficar. Eis um desafio merecedor (e necessitado) de resposta

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Solilóquio da Ignorância

Existe algo no saber que apavora. Algo que paralisa. O saber é uma mão desajeitada, de gestos bruscos e golpes corajosos, que desnuda o mundo e o faz vibrar em tons de certeza e lucidez. Tons que a minha retina nem sempre deseja enxergar, mas que irrenunciavelmente o faz, porque é para isso que existe, porque não conhece outra forma de existir. 


Penhascos são altos cumes rochosos, mas também são abismos para quem os olha de cima. Desloco-me de um canto a outro e é a consciência dessa multiplicidade que me causa esses espasmos cerebrais que nos ensinaram a chamar de dúvidas. O conhecimento se agiganta mais e mais à medida que o conheço. E, assim como tudo o que vemos na superfície, também é o saber: quanto mais perto dele estamos, tanto maior é o seu tamanho aparente [mesmo que, como diria meu pai (tão amado), não ocupe espaço algum, nessas massas cinzentas e brancas].


As sinapses que o conhecimento cria vão, então, furiosamente, transformando a mim e à minha liberdade. Então, percebo que já não há liberdade quando a ignorância dá lugar ao saber. Ainda que a ignorância tenha declarado guerra ao livre arbítrio, porque faz surgir um vício redibitório, o conhecimento é o único que me aprisiona às minhas decisões: a responsabilidade de as ter tomado conscientemente é um peso irrenunciável. Assim foi erigido o termo “consentimento”. 


Concluo, então, que a liberdade... ela sequer existe! Conhecer é um ato inevitável de abrir uma ferida que nunca se vai cicatrizar, de seguir um caminho cujo retorno é impossível. E tudo que é impossível impossivelmente será livre, ou libertador. O saber é a verdade, mas a verdade nem sempre é querida; ainda que seja genuinamente necessária.

domingo, 22 de março de 2020

Um

Certa vez, desenvolvi uma conversa silenciosa, profunda e esclarecedora com o Mar, através da qual fui levado a finalmente ser capaz de compreender a logística que rege, e sempre regeu, todas as minhas relações e interações acumuladas ao longo desses meus bem-vividos 35 anos. Foi preciso paciência, claro, e uma forte dose de boa vontade, para estar ali ao longo de tantas horas, já que o Mar tem aquela tendência fatigante à prolixidade, numa construção e reconstrução eterna de frases; atrelada à sua personalidade detalhista, que o leva a sempre pensar em demasia na tentativa inútil de atingir seu ideal de perfeição em cada linha que descreve. 

Pouca gente sabe, afinal, mas é tão somente por causa desse bendito perfeccionismo do Mar que as ondas são formadas: incansavelmente, ele se esforça em reunir suas águas, da costa para o horizonte, com a intenção de amontoar uma crista tão límpida e perfeita, que assim seja digna de permanecer pela eternidade. Entretanto, tão logo percebe que, junto com sua água, está também arrastando para o cume os intrusos e inevitáveis sargaços, algas e peixes (e, há alguns milênios, lixo), que impossibilitam que aquilo seja tão perfeito quanto o seu desejo; ele rapidamente desfaz sua construção, para recomeçá- la, então, deixando que a crista se quebre e que tudo corra de volta em direção à costa. 

É assim, sem cessar suas tentativas, que ele agora me faz oscilar em sua superfície, massageando meus membros e tronco, enquanto mantenho os olhos abertos, com a cabeça imersa nesta água salgada que suporta meu corpo em decúbito ventral. Sinto-me embalado pelo Transtorno Obsessivo Compulsivo deste meu amigo, e lembro com bom- humor o dia em que, enquanto compartilhávamos o nosso cansaço, ele me confidenciou esse segredo; que, à época, até prometi não dividir com ninguém mais. Rimos juntos quando lhe relatei as infinitas e extravagantes explicações que a Ciência procura dar para as suas ondas, desenhadas, na verdade, pelo resultado de um genuíno ócio produtivo. O movimento dos oceanos nunca mais foi o mesmo aos meus olhos, tampouco a minha mania de tentar dar motivo (e controlar) a tudo o que acontece ao meu redor. 

Já são sete horas da manhã e os moradores da Ilha onde vim parar ainda não são capazes de me ver; ou de ver o que parece ter restado de mim, nos vai e vens das frias águas do Atlântico Norte. Devo parecer qualquer coisa como um objeto de pesca, restos de uma rede, de um barco. Sei que não estava na minha melhor forma física quando vim ter com o Mar e acabei me deixando ser trazido até aqui, mas tento, ao menos, pensar que não seria confundido com um filhote de Cetáceo encalhado na costa, e isto basta para confortar a minha autoestima. Assim começo a história da minha vida. E da minha morte.

(O texto foi escrito como capítulo introdutório de uma história a quatro mãos que não mais se pretende ser escrita. Decidi me desfazer dele, publicando-o aqui, como forma de interromper o processo criativo e a expectativa de uma continuação na minha mente. Boa quarentena a todos! Que esta inquietação mental sirva para criar o afeto, não para destruí-lo!)

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Cloud 9

A grande frustração para quem, como eu, gosta de escrever, é a convicção de que nenhum vocabulário é vasto o suficiente para abarcar todos os sentimentos e sensações que o ser humano é capaz de experimentar. 

Quando estamos aprendendo um novo idioma, é comum que tenhamos certas dificuldades para expressar nossas intenções comunicativas. Não temos ainda vocabulário suficiente e é necessário trabalhar e estudar para expandi-lo. O problema em relação aos sentimentos é que esse abismo é intransponível, não há estudo que o reduza. Não se trata de um desconhecimento de expressão linguística, mas de uma ausência total: a palavra não existe. 

Então, na tentativa de reduzir essa frustração, lançamos palavras e adjetivações que não dizem nada sobre o que realmente se sente, mas sobre a impossibilidade/incapacidade de dizê-lo. Uma dessas palavras, talvez a mais comum, é: INDESCRITÍVEL. Palavras como essa são adjetivos que descrevem (ou denunciam), com um só vocábulo, uma ausência de vocábulos compatíveis com o que se quer expressar. Não há, para mim, nada mais metalinguístico do que isto. Nem mais genuinamente frustrante. 

Hoje, lembrei que meu blog fazia 9 anos de existência. Há 9 anos, eu tento transcrever em palavras aqui o turbilhão de sentimentos e inquietações “indescritíveis” que me açoitam ou acariciam a alma. Pesquisei, então, a palavra “indescritível” (e o seu plural) em cada uma das minhas 33 publicações de 2011 até aqui e não a encontrei; o que me leva a experimentar uma breve dúvida entre duas constatações: 1) eu tenho talvez um bom vocabulário que, há 9 anos, vem sendo suficiente para, de fato, descrever as minhas mais indescritíveis sensações, ou; 2) há 9 anos, as sensações que narro aqui não são suficientemente indescritíveis. 

Feitas as contas, torço pela primeira conclusão, mas, em qualquer um dos casos, felizes 9 anos de solilóquios! Felizes 9 anos de textos escritos para serem escritos e não para serem lidos!

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

UX047: MAD - REC

Escrevi o texto abaixo enquanto tentava suportar 8h de ócio sentada na poltrona 52A do voo UX047: um voo sem sono, sem livros, sem filmes e com muitos e muitos monólogos mentais. Pensei duas vezes antes de publicar, mas, ainda na primeira delas, já havia decidido que sim. Espero incentivar monólogos; às vezes, tudo o que a nossa mente precisa é arrumar um tempo para se ouvir melhor. Vejamos.


Hoje, mais uma vez, deixei Lisboa para trás por um tempinho, mas pisei em solos espanhóis durante uma conexão em Madrid, antes de seguir para o meu destino final de férias: Recife. A capital de Portugal, em termos de coordenadas geográficas, está localizada, no hemisfério Norte, a 9° Oeste, tendo adotado o fuso horário GMT/UTC, o mesmo que marca o meridiano zero em Greenwich.

Quando no país vizinho, entretanto, o relógio precisa ser adiantado em 1h, pois, assim como o restante da chamada Europa central, a Espanha encontra-se no fuso GMT+1. Eu não ajustei meu relógio em Madrid. Na verdade, sequer lembro de tê-lo feito após encerrado o horário de verão europeu, em Outubro. Já me perdi nas contas, mas, nesse exato momento, sobrevoando o Oceano Atlântico, leio no vidro que são 16h40. Apesar disso, os comissários de bordo, já estão servindo o que eu acredito ser o jantar; o que me leva a duvidar desses ponteiros dourados, mas a também pensar que, em algum lugar do Globo, ainda são realmente 16h40, e, em algum outro, como aqui neste avião, 16h40 pode já ser a hora certa para a última refeição do dia. 

Por falar no Oceano Atlântico, uma pessoa que conheci durante esse ano planejava atravessá-lo numa viagem que duraria cerca de 30 longos dias, sem comunicação. Daqui de cima, dessa aeronave, finjo que quase posso ver seu barco lá embaixo, mas ele fica para trás, como todo o restante da imensidão azul, levando cerca de 90x mais tempo que eu para concluir a mesma travessia. Passamos por uma turbulência depois do jantar à luz do Sol e eu penso: espero que haja tosta mista e bons ventos para tocar aquele barco lá embaixo. 

Olhando o meu planeta daqui de cima e pensando que o meu querido avô, com seu medo mortal de aviões, nunca viu (e talvez nunca verá) a Terra desse ponto de vista, senão através das fotos que eu lhe mostro, começo a cozinhar um monte de outros pensamentos verdes

Uma das paisagens que mais gosto de observar (e fotografar) durante minhas viagens é quando o céu forma um extenso, denso, macio e indefectível tapete branco de nuvens, pelo qual a aeronave desfila, no azul infinito, com seus mais de 300 passageiros. De cada uma das 140 janelas deste Airbus (o comissário a quem perguntei fez questão de contá-las porque não sabia responder), vê-se uma paisagem diferente, tem-se um ponto de vista diferente, de um observador diferente, e esse é um conjunto que se repete em cada singular avião sobrevoando o céu neste exato instante. Lá debaixo ainda, imagino vovô olhando para cima e vendo esse mesmo céu, azul e branco, mas em tons de cinza: esse meu céu predileto é o mesmo de um dia nublado e chuvoso para ele, com essas mesmas nuvens densas encobrindo o sol

Tomar nota desse looping mental, que a minha cabeça dá durante essas cansativas 8h de voo, fez-me refletir sobre o quanto as pessoas (não me eximo da contagem) se equivocam e se limitam quando pensam que seu ponto de vista é único e unicamente correto, e se recusam a ver as horas no relógio do outro. Ajustar meu relógio, enquanto em Recife, com a hora de Lisboa não vai mesmo fazer sentido na minha rotina, mas saber as horas de lá vai me fazer entender o porquê de a minha amiga Larissa já estar jantando, quando o céu ainda é claro para mim. 

Tudo isso me faz lembrar de uma música de The Strokes que diz “twenty ways to see the World are twenty ways to start a fight”, e imediatamente volta meu pensamento para um artigo da revista de bordo que li no primeiro voo do dia, a respeito do 1º Natal durante a 1ª Guerra Mundial. Após a noite 24, em que se desejaram feliz Natal e cantaram juntos, à distância, cada qual de suas trincheiras, os soldados alemães e ingleses cessaram as atividades bélicas na manhã de 25 de Dezembro de 1914 e confraternizaram entre si: apertaram as mãos, jogaram futebol, trocaram presentes, tabacos, conversaram... Depois desse acontecimento, as tropas foram proibidas de repetir qualquer ato semelhante de confraternização com os inimigos pelos anos seguintes de guerra.

Pequenos atos de humanidade não deveriam ser negligenciados no conteúdo programático das escolas. Isto faz com que pareçam algo mais extraordinário do que a morte de tantos milhões de seres humanos. E talvez sejam mesmo... afinal, ingleses e alemães estavam ali, de forma tão inédita, sob um mesmo fuso horário. 

Enfim, ter consciência da minha pequenez nesse mundo TÃO vasto e TÃO cheio de diferenças me faz querer ter acesso a cada uma das suas incontáveis janelas (das casas e das almas), de cada uma das 24 formas de contar o tempo, mas também me faz pensar em como, em pleno século XXI, nossas comunicações ainda são tão perturbadas pela falta dessa disposição. Janelas e relógios com vistas e horas diferentes das nossas são irremediavelmente bloqueados pela nossa incapacidade de entendê-los... mas, a vida que siga (e nós que estagnemos).

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

1 Ano Lisboeta Também Tem 365 Dias

Jardim da Estrela, meu lugar predileto de Lisboa (foto tirada ontem)

Ontem completou-se uma translação da Terra desde que cheguei a Lisboa. Ontem, há 1 ano atrás, estava descendo no Aeroporto de Portela e enfrentando meu primeiro “desafio”: transportar mais de 50kg de bagagem (sim, minhas malas eram mais pesadas que eu) até o Uber. 

Com muito esforço de braços pouco habilidosos/musculosos, deitei as malas no carrinho, uma sobre a outra, e, inclinando o corpo para a frente, consegui me deslocar. Alcancei a saída, mas o visor do celular (você vai se acostumar, muito mais rápido do que imagina, a dizer “ecrã do telemóvel” depois de ter que resolver algumas burocracias de telefonia) mostrava que o motorista estava em outra parte. Mapas confusos, eram andares diferentes. 

Apressei o passo e, ao atravessar a rua, o carrinho foi de encontro a um pequeno degrau da faixa de pedestres, e todas as malas vieram ao chão

Ouvi algumas risadas e algumas reações de surpresa ao fundo, mas não ouvi o “deixa-me te ajudar” que eu precisava naquele momento. Tive vontade de chorar, parecia que a aventura mal tinha começado e os primeiros minutos já davam sinais de que sairia tudo errado. Então, lembrei de algumas palavras do meu pai sobre essa minha mania de “chorar por tudo” e de como eu o tinha feito acreditar que eu não era mais aquela mesma menina chorona de 10 anos atrás... Engoli o choro, enquanto lutava contra a gravidade para manejar o peso das minhas malas ridiculamente cheias, e segui, até alcançar o local exato em que o segundo Uber me aguardava (já que o primeiro havia cancelado a viagem em razão da minha demora)

Surpresa agradável foi encontrar aquele gentil e simpático motorista, que me ajudaria com as malas e me levaria para esse mesmo lugar na Estrela que, até hoje, ainda chamo de “casa”

E assim também tem sido esse meu primeiro ano inteiro por aqui... Eu trouxe muito mais do que roupas naquelas bagagens: eu trouxe meu medos, anseios, paixões, sonhos, traumas, e eles, invariavelmente (como também aconteceria se eu estivesse em qualquer outro lugar), desequilibram-se e vêm ao chão. Nem sempre tenho ajuda para reerguê-los, então, aprendi a fazer isto sozinha; mas, com frequência, cruzo com pessoas adoráveis, que fazem essas malas parecerem menos pesadas do que realmente são, ou com pessoas desagradáveis, que parecem rir quando as deixo cair. 

O choro? Decidi que não preciso engoli-lo mais. Nunca gostei mesmo do sabor, mas a verdade é que percebi que ele não é uma amostra grátis da minha fraqueza, mas sim a forma como eu expresso aquilo que muita gente, surpreendentemente, ainda pensa que nem tenho: sentimentos. Chorar é uma busca por consolo, e saber que esse consolo pode vir de nós mesmos, como resultado do raciocínio que o próprio desespero do soluçar entre uma lágrima e outra nos trouxe, é o caminho mais genuíno para o crescimento

Então, com bagagens, pessoas, e muito estudo, tenho construído diariamente a minha Lisboa, desde 18 de setembro de 2018. Quanto ao Brasil... Eu nunca deixei aquele lugar.

sábado, 24 de agosto de 2019

Ergueu, no patamar, 4 paredes sólidas

Ultimamente, tenho tido muita inspiração para escrever (o que não é necessariamente um bom sinal), e avaliado várias discussões mentais minhas que dariam ótimos solilóquios se eu as transcrevesse em publicações no blog. Mas, como estou na reta final do meu 1º ano do mestrado aqui em Lisboa, com uma deadline que parece que vai acabar me deixando dead mesmo, tenho guardado essas inspirações para as páginas dos três artigos que preciso finalizar até 30/09. 

Hoje, entretanto, optei por não evitar o desvio produtivo, porque lembrei da função terapêutica e relaxante que a escrita também desempenha em mim. 

Já faz alguns meses, comecei a me despedir de algumas pessoas que fui conhecendo ao longo desse quase 1 ano aqui em Portugal. Amigos da faculdade, flatmates, pessoas com as quais eu convivi e criei laços de carinho e amizade. A esmagadora maioria da minha turma no mestrado em Ciências Criminais é brasileira: já era previsível que esse momento chegaria. O que eu não previ foi como essas partidas poderiam impactar, de alguma forma, a minha vida. 

Em 2015, na China, uma empresa do ramo da construção ergueu um edifício de 57 andares em menos de 20 dias de obras. Um ano inteiro, como vocês imaginam, então (e como eu também imaginava), é tempo suficiente para construir muita coisa: uma casa, uma empresa, um prédio, uma praça, uma família, uma amizade... mas não é tempo hábil para construir uma vida. E o que ninguém me avisou é que, às vezes, nossas construções podem estar alicerçadas em bases com uma data de validade pré-determinada, e que a gente precisa reconstruir alguns pilares se quiser evitar que o edifício inteiro desabe. 

Diariamente, eu tenho construído um pouco de uma possível nova vida por aqui. Pessoas que vou conhecendo, lugares que vou visitando, eventos e estudos que vão despertando novos interesses profissionais, histórias que vão sendo cruzadas com as minhas... Mas, quando você está longe de casa (e isso eu comecei a perceber desde o meu 1º intercâmbio em Munique), longe de onde você sempre chamou de casa, porque é onde suas raízes permanecem fincadas; é muito difícil recriar raízes tão robustas noutro lugar. Então, você descobre que, em 1 ano, você é capaz de construir laços, e laços fortes, mas que eles nunca substituirão as raízes de que você precisa. 

Essa vida longe de casa parece apenas uma coleção de encontros e despedidas. Um entra e sai de gente, numa obra permanente que me lembra aquela reforma das estações de BRT na Avenida Caxangá em Recife, sem data para acabar. Você acorda, todo dia, disposto a carregar novos tijolos, mas não sabe com quem contar para preparar a argamassa. Não porque não há ninguém à volta, mas porque são obreiros de empreitada, que, num dia, estão na sua obra, e, no dia seguinte, estão sabe lá Deus onde. Zygmunt Bauman, se estivesse vivo, provavelmente incluiria isso no seu amplo conceito de Modernidade Líquida. 

Minha nova flatmate chegou há uns 3 meses. Ela também é brasileira e me disse que a gente não pode esperar que essas nossas obras fiquem prontas tão rápido. 

Foram 26 anos divididos entre Nazaré da Mata e Recife, realidades diferentes, mas próximas, de uma vida que foi sendo construída também aos pouquinhos, com a ajuda de muita gente que entrou e saiu rápido, mas de outras tantas pessoas que entraram e quiseram permanecer ali, ou que estiveram desde o princípio mesmo, por culpa da loteria genética. 

Eu fiz a minha primeira carteira de identidade (sim, já foram várias vias ao longo dessa vida hehe) quando tinha uns 13 anos de idade. Aos 17, tirei meu Título de Eleitor. Em 2016, aos 23, finalmente me habilitei para dirigir automóveis (formalmente não significa materialmente, mas tudo bem rsss). Aos 25, tornei-me oficialmente advogada e tomei a decisão de sair da minha zona de conforto e procurar um mestrado na Europa, sem um plano concreto do que queria a seguir. Não dá para cruzar essa linha e, em 1 ano, querer que tudo aconteça, querer ver novas raízes tão profundas quanto as que permanecem no Brasil, querer uma base bem alicerçada e pedreiros e engenheiros trabalhando comigo sob um contrato  de trabalho sem termo. Seria ideal, mas não condiz com a realidade. E quem mora longe de casa sabe disso. 

Então, às pessoas a quem eu disse que já estava muito bem adaptada à vida em Lisboa: parece que me precipitei. Mesmo depois de 1 ano, tem muita coisa ainda acontecendo e colocando a gente à prova. Às pessoas que mal entraram e já saíram da minha vida: obrigada por terem mexido um pouquinho da argamassa comigo e ajudado a erguer algumas paredes. Às que entraram há bastante tempo ou agora, mas que sabem que tendem a permanecer, mesmo que à distância, por assistência remota: sintam-se sempre em casa e contem comigo nas vossas obras também

Mais uns 26 anos, e, quem sabe, eu já poderei ver algum resultado, seja lá onde estiver!

P.S.: o título do post, dessa vez, é um verso da música Construção, de Chico Buarque, que eu lembrei enquanto escrevia aqui. Não sei se essa é uma informação de amplo conhecimento, mas acho a letra dessa canção particularmente genial, pois todas as suas rimas são feitas com o uso de Proparoxítonas; que correspondem à menor classe de palavras da Língua Portuguesa, se comparadas às Oxítonas e Paroxítonas. Esse homem não ganhou o Prêmio Camões à toa, meus amigos.

P.P.S.: só a título de informação, porque mencionei que me habilitei apenas aos 23 anos no Brasil, essa semana, chegou minha Carta de Condução portuguesa pelos correios. Mas, não se preocupem, friends, ainda não tenho carro, nem cara de pau, nem ossos de ferro para dirigir por aqui rsssss