quarta-feira, 6 de julho de 2016

"O banho nosso de cada dia, dá-nos hoje"

Acho que a maioria que vai ler isso nunca parou pra pensar que um banho poderia representar uma expressão de dignidade, né?! Um ato tão simples, que a gente repete quantas vezes quiser (ou precisar), a qualquer hora do dia, naquela aguinha quente do chuveiro elétrico, ouvindo música alta, aparando a água com as mãos, passando uns minutos inerte embaixo dela, só pra sentir o corpo inteiro relaxando e poder tomar as próximas (difíceis) decisões: qual será o shampoo da vez? Uso meu sabonete esfoliante? Será que dá tempo de testar minha nova hidratação? 

Mas acredito que todo mundo aqui já passou pela péssima experiência de tomar banho com um balde. No interior ou na praia, às vezes, faltava "água na rua" e a gente se via obrigado a isso. Oportunidade pra tomar banho com água mineral e deixar meu cabelo mais bonito? Se tava muito fria, Santa Luzi vinha com uma chaleira e despejava água quente pra facilitar a vida da gente. Ótimo! Mas como era chato ficar jogando água na cabeça, viu?! Meu pai resolvia logo o incômodo, construindo uma cisterna e instalando uma bomba que "tocava a água para a caixa". Lembro como se fosse hoje, no meio de vários banhos, eu gritando "Alguém liga a bomba, por favor, que acabou a água!". E a mágica do conforto acontecia. 

Na minha infância também, quando eu ia para o acampamento de férias, experienciava desconfortáveis racionamentos de banho. Eram 10 meninas em cada quarto, com apenas 1 chuveiro. Limitavam nosso tempo na água, mas aquilo nem era água, era gelo. Havia quem não encarasse de manhãzinha, mas eu ia na garra, porque só acordo de verdade assim. Levantava mais cedo que todas, porque o tempo era curto e eu tinha minhas táticas, né?! Primeiro, as mãos e os pés, depois os membros, o tronco e, finalmente, enfiava a cabeça, pulando freneticamente. Aguentava tudo me lembrando de que, em alguns dias, aquele sofrimento acabaria e eu estaria na minha casinha com aventuras de uma semana super divertida e bem "selva" pra contar. 

Hoje, entretanto, vi uma publicação do Diário de Pernambuco e foi inevitável lembrar e refletir sobre tudo isso. O link da notícia é esse: 


Trata-se de uma ONG que capitaneia um projeto de criação de ônibus para oferecer banhos gratuitos a moradores de rua aqui na capital. 

Ano passado, quando tava voltando pra casa, presenciei um menino "invadindo" a torneirinha de um estabelecimento comercial na esquina com a Av. Ayrton Senna. Ele pegava a água com as mãos em concha e ia levando às partes do corpo, no meio da rua mesmo, com os carros passando, com gente feito eu olhando. Colocava a água na boca enquanto fazia isso: também era uma oportunidade de matar a sede, afinal. Eu tinha acabado de retornar da academia e, em poucos minutos, estaria em mais um ritual debaixo do chuveiro e esqueceria aquela cena. 

O vídeo, na notícia do Diário, mostra Fábio que, assim como o menino que eu vi, precisa submeter sua higiene (quando é possível realizá-la) a condições sub-humanas. Lembrei do desconforto dos banhos com balde na infância, das experiências geladas no acampamento... Era tudo transitório pra mim: eu sabia que, cedo ou tarde, meu banho quentinho se restabeleceria. Mas, pra essas pessoas, a situação é permanente. Eles convivem, todos os dias, com um racionamento compulsório de banho, são obrigados a se utilizar de locais completamente inapropriados pra isso, numa condição degradante que tá "banhos-luz" de corresponder ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que a nossa CRFB/88 faz questão de ostentar como fundamento. 

O Prosol é, sim, um projeto muito humano, mas que, infelizmente, escancara a falta de "humanidade" em que esses moradores vivem. E não, eu não quero dizer que essas pessoas são menos dignas ou menos humanas só por não tomarem banho como eu tomo. O que eu quero dizer é que, justamente por serem humanas como eu, são tão dignas quanto qualquer outra pessoa ao acesso a um banho, tendo violados os direitos inerentes à sua condição de ser humano quando precisam se submeter a essa precariedade. E isso porque eu só tou falando de banho, né?! Se a gente fosse elencar tudo a que Fábio não tem acesso... Haja caracteres. 

Enfim, fazia tempo que eu não publicava nada novo aqui e quis compartilhar esse sentimento de revolta e de impotência de hoje. Sei que não dá pra oferecer meu banheiro a cada pessoa que tá na rua e precisa de um banho, de muitos banhos. Sei que centenas de ônibus adaptados com chuveiro não vão mudar a condição de vida dessas pessoas. Sei que existem direitos ainda mais urgentes pra gente cuidar... Mas acho que toda grande mudança parte de uma pequena reflexão e eu quis trazer a minha pra, ao menos, incentivar novas reflexões que resultem em mais projetos como esse.