domingo, 22 de março de 2020

Um

Certa vez, desenvolvi uma conversa silenciosa, profunda e esclarecedora com o Mar, através da qual fui levado a finalmente ser capaz de compreender a logística que rege, e sempre regeu, todas as minhas relações e interações acumuladas ao longo desses meus bem-vividos 35 anos. Foi preciso paciência, claro, e uma forte dose de boa vontade, para estar ali ao longo de tantas horas, já que o Mar tem aquela tendência fatigante à prolixidade, numa construção e reconstrução eterna de frases; atrelada à sua personalidade detalhista, que o leva a sempre pensar em demasia na tentativa inútil de atingir seu ideal de perfeição em cada linha que descreve. 

Pouca gente sabe, afinal, mas é tão somente por causa desse bendito perfeccionismo do Mar que as ondas são formadas: incansavelmente, ele se esforça em reunir suas águas, da costa para o horizonte, com a intenção de amontoar uma crista tão límpida e perfeita, que assim seja digna de permanecer pela eternidade. Entretanto, tão logo percebe que, junto com sua água, está também arrastando para o cume os intrusos e inevitáveis sargaços, algas e peixes (e, há alguns milênios, lixo), que impossibilitam que aquilo seja tão perfeito quanto o seu desejo; ele rapidamente desfaz sua construção, para recomeçá- la, então, deixando que a crista se quebre e que tudo corra de volta em direção à costa. 

É assim, sem cessar suas tentativas, que ele agora me faz oscilar em sua superfície, massageando meus membros e tronco, enquanto mantenho os olhos abertos, com a cabeça imersa nesta água salgada que suporta meu corpo em decúbito ventral. Sinto-me embalado pelo Transtorno Obsessivo Compulsivo deste meu amigo, e lembro com bom- humor o dia em que, enquanto compartilhávamos o nosso cansaço, ele me confidenciou esse segredo; que, à época, até prometi não dividir com ninguém mais. Rimos juntos quando lhe relatei as infinitas e extravagantes explicações que a Ciência procura dar para as suas ondas, desenhadas, na verdade, pelo resultado de um genuíno ócio produtivo. O movimento dos oceanos nunca mais foi o mesmo aos meus olhos, tampouco a minha mania de tentar dar motivo (e controlar) a tudo o que acontece ao meu redor. 

Já são sete horas da manhã e os moradores da Ilha onde vim parar ainda não são capazes de me ver; ou de ver o que parece ter restado de mim, nos vai e vens das frias águas do Atlântico Norte. Devo parecer qualquer coisa como um objeto de pesca, restos de uma rede, de um barco. Sei que não estava na minha melhor forma física quando vim ter com o Mar e acabei me deixando ser trazido até aqui, mas tento, ao menos, pensar que não seria confundido com um filhote de Cetáceo encalhado na costa, e isto basta para confortar a minha autoestima. Assim começo a história da minha vida. E da minha morte.

(O texto foi escrito como capítulo introdutório de uma história a quatro mãos que não mais se pretende ser escrita. Decidi me desfazer dele, publicando-o aqui, como forma de interromper o processo criativo e a expectativa de uma continuação na minha mente. Boa quarentena a todos! Que esta inquietação mental sirva para criar o afeto, não para destruí-lo!)

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