quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

UX047: MAD - REC

Escrevi o texto abaixo enquanto tentava suportar 8h de ócio sentada na poltrona 52A do voo UX047: um voo sem sono, sem livros, sem filmes e com muitos e muitos monólogos mentais. Pensei duas vezes antes de publicar, mas, ainda na primeira delas, já havia decidido que sim. Espero incentivar monólogos; às vezes, tudo o que a nossa mente precisa é arrumar um tempo para se ouvir melhor. Vejamos.


Hoje, mais uma vez, deixei Lisboa para trás por um tempinho, mas pisei em solos espanhóis durante uma conexão em Madrid, antes de seguir para o meu destino final de férias: Recife. A capital de Portugal, em termos de coordenadas geográficas, está localizada, no hemisfério Norte, a 9° Oeste, tendo adotado o fuso horário GMT/UTC, o mesmo que marca o meridiano zero em Greenwich.

Quando no país vizinho, entretanto, o relógio precisa ser adiantado em 1h, pois, assim como o restante da chamada Europa central, a Espanha encontra-se no fuso GMT+1. Eu não ajustei meu relógio em Madrid. Na verdade, sequer lembro de tê-lo feito após encerrado o horário de verão europeu, em Outubro. Já me perdi nas contas, mas, nesse exato momento, sobrevoando o Oceano Atlântico, leio no vidro que são 16h40. Apesar disso, os comissários de bordo, já estão servindo o que eu acredito ser o jantar; o que me leva a duvidar desses ponteiros dourados, mas a também pensar que, em algum lugar do Globo, ainda são realmente 16h40, e, em algum outro, como aqui neste avião, 16h40 pode já ser a hora certa para a última refeição do dia. 

Por falar no Oceano Atlântico, uma pessoa que conheci durante esse ano planejava atravessá-lo numa viagem que duraria cerca de 30 longos dias, sem comunicação. Daqui de cima, dessa aeronave, finjo que quase posso ver seu barco lá embaixo, mas ele fica para trás, como todo o restante da imensidão azul, levando cerca de 90x mais tempo que eu para concluir a mesma travessia. Passamos por uma turbulência depois do jantar à luz do Sol e eu penso: espero que haja tosta mista e bons ventos para tocar aquele barco lá embaixo. 

Olhando o meu planeta daqui de cima e pensando que o meu querido avô, com seu medo mortal de aviões, nunca viu (e talvez nunca verá) a Terra desse ponto de vista, senão através das fotos que eu lhe mostro, começo a cozinhar um monte de outros pensamentos verdes

Uma das paisagens que mais gosto de observar (e fotografar) durante minhas viagens é quando o céu forma um extenso, denso, macio e indefectível tapete branco de nuvens, pelo qual a aeronave desfila, no azul infinito, com seus mais de 300 passageiros. De cada uma das 140 janelas deste Airbus (o comissário a quem perguntei fez questão de contá-las porque não sabia responder), vê-se uma paisagem diferente, tem-se um ponto de vista diferente, de um observador diferente, e esse é um conjunto que se repete em cada singular avião sobrevoando o céu neste exato instante. Lá debaixo ainda, imagino vovô olhando para cima e vendo esse mesmo céu, azul e branco, mas em tons de cinza: esse meu céu predileto é o mesmo de um dia nublado e chuvoso para ele, com essas mesmas nuvens densas encobrindo o sol

Tomar nota desse looping mental, que a minha cabeça dá durante essas cansativas 8h de voo, fez-me refletir sobre o quanto as pessoas (não me eximo da contagem) se equivocam e se limitam quando pensam que seu ponto de vista é único e unicamente correto, e se recusam a ver as horas no relógio do outro. Ajustar meu relógio, enquanto em Recife, com a hora de Lisboa não vai mesmo fazer sentido na minha rotina, mas saber as horas de lá vai me fazer entender o porquê de a minha amiga Larissa já estar jantando, quando o céu ainda é claro para mim. 

Tudo isso me faz lembrar de uma música de The Strokes que diz “twenty ways to see the World are twenty ways to start a fight”, e imediatamente volta meu pensamento para um artigo da revista de bordo que li no primeiro voo do dia, a respeito do 1º Natal durante a 1ª Guerra Mundial. Após a noite 24, em que se desejaram feliz Natal e cantaram juntos, à distância, cada qual de suas trincheiras, os soldados alemães e ingleses cessaram as atividades bélicas na manhã de 25 de Dezembro de 1914 e confraternizaram entre si: apertaram as mãos, jogaram futebol, trocaram presentes, tabacos, conversaram... Depois desse acontecimento, as tropas foram proibidas de repetir qualquer ato semelhante de confraternização com os inimigos pelos anos seguintes de guerra.

Pequenos atos de humanidade não deveriam ser negligenciados no conteúdo programático das escolas. Isto faz com que pareçam algo mais extraordinário do que a morte de tantos milhões de seres humanos. E talvez sejam mesmo... afinal, ingleses e alemães estavam ali, de forma tão inédita, sob um mesmo fuso horário. 

Enfim, ter consciência da minha pequenez nesse mundo TÃO vasto e TÃO cheio de diferenças me faz querer ter acesso a cada uma das suas incontáveis janelas (das casas e das almas), de cada uma das 24 formas de contar o tempo, mas também me faz pensar em como, em pleno século XXI, nossas comunicações ainda são tão perturbadas pela falta dessa disposição. Janelas e relógios com vistas e horas diferentes das nossas são irremediavelmente bloqueados pela nossa incapacidade de entendê-los... mas, a vida que siga (e nós que estagnemos).