terça-feira, 18 de junho de 2019

Presídios, Fotografia, Aljube & Espelhos

Quando o assunto é Segunda Guerra Mundial, eu tenho um livro predileto: “O Pianista”, de Wladyslaw Szpilman, que narra todas as crueldades e atrocidades vividas, presenciadas ou sabidas pelo autor em Varsóvia durante os anos de 1939 a 1945.

Como judeu sobrevivente do Holocausto, Szpilman escreveu a obra quase imediatamente após o fim daquelas experiências, ainda sob o efeito traumático e negro que elas lhe proporcionaram, transcrevendo em palavras todas as cenas e sentimentos ainda quentes, sem esperar que o sangue arrefecesse ou que as chagas do mundo iniciassem o processo de cicatrização, publicando “O Pianista” já em 1946. Foi dessa forma que o autor conseguiu transmitir um realismo tão dilacerante e detalhado às suas descrições, que fez do seu livro um relato vivo raríssimo sobre aqueles episódios.

Desde que li “O Pianista”, em 2015, passei a dar mais atenção ao lapso temporal que deixo transcorrer entre um acontecimento relevante e o relato dele, para publicar aqui no blog. Chego a tomar notas no meio da madrugada, quando acordo com qualquer ideia ou frase na cabeça, porque percebi que, de fato, as memórias, e sobretudo os sentimentos que elas desencadeiam, vão perdendo força e detalhes em nossa mente com o passar das semanas. No meu caso, já com poucos dias, faz-se alguma turbidez nas lembranças que me impedem de descrevê-las com o mesmo grau de fidelidade.

Então, é assim, sob o risco de esquecer alguns detalhes ou de não transmitir o que alguns momentos, de fato, representaram para mim, que, diante de um intervalo de 1 mês de preguiça de publicar, mas finalmente munida de uma generosa dose de tempo (não que eu realmente o tenha hoje, mas sabe quando isso é o melhor que você pode fazer já que sabe que não irá estudar?) e boa vontade, eu pretendo descrever aqui (e sem economizar linhas), alguns episódios que se iniciaram no sábado 18 de maio, Dia Internacional dos Museus.

Bom. Para além do mestrado em Direito Penal e Ciências Criminais, eu também tenho feito, aos sábados, um curso de Pós-graduação em Direito e Medicina, na Universidade de Lisboa, que tem me rendido um aprendizado riquíssimo.

Naquele sábado, em especial, tive a oportunidade de assistir à intervenção do Sr. Prof. Duarte Nuno Vieira, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que, além de inúmeras funções e um currículo brilhante, atua junto à ONU, investigando, periciando e documentando casos de tortura e maus tratos nos presídios do mundo todo. Foi uma aula fantástica, mas, ao mesmo tempo, desconfortável. E a culpa do desconforto não foi do palestrante, das imagens, e tampouco daqueles duros assentos do anfiteatro 6. A culpa foi da verdade.

É difícil encarar a realidade da existência de cárceres em condições tão desumanas, olhar para ela. Você sabe que o elefante branco está na sala, mas ignorá-lo sempre parece mais fácil. Ainda que eu tenha a consciência de que a própria ausência de liberdade que um isolamento celular representa já é uma negativa à natureza da humanidade, é impressionante como alguns países (aqui incluso o Brasil), mesmo passados 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda reduzem seus encarcerados a uma posição animalesca, submetendo-os ao que ultrapassa os limites de uma Pena Privativa de Liberdade (PPL) e se torna uma Pena Privativa de Dignidade.

O professor mencionou as Regras de Mandela, as guidelines que determinam o mínimo aceitável para os estabelecimentos prisionais: altura das celas, largura, comprimento, iluminação, temperatura, condições gerais. Mas, temos aqui dois problemas. O primeiro deles é que essas regras podem ser flexibilizadas, para que se adaptem à realidade de cada país; o que me leva a questionar até que ponto essa flexibilização não tende a relativizar esse mínimo e torná-lo permissivo demais, passando a considerar aceitáveis condições muito aquém das pretendidas. E o segundo e mais preocupante problema é que: essas regras NÃO têm caráter vinculativo, de modo que os países não estão obrigados a obedecê-las; o que dispensa comentários.

Foi então, nesse cenário de desconforto pessoal, que, aproveitando a temática posta e o interesse que ela despertou em mim, eu finalmente escolhi o Museu que visitaria naquele Dia Internacional dos Museus (cuja data, aqui em Portugal, dá acesso gratuito aos visitantes): o Museu do Aljube Resistência e Liberdade, que fica localizado no bairro de Alfama, coração de Lisboa.

O Museu do Aljube ocupa um edifício em que, até 1965, funcionava uma prisão, a Cadeia do Aljube, na qual já estiveram encarcerados, à época da Ditadura Militar, diversos presos políticos e sociais: o cenário perfeito para abrigar uma mostra de fotos dos principais estabelecimentos prisionais de Portugal.



A exposição, intitulada “The Portuguese Prison Project”, havia iniciado as visitações uma semana antes daquele sábado, no Piso 0 do Aljube, e eu estava ansiosa para conhecê-la. Pareceu a oportunidade perfeita. E era mesmo: assim que cheguei ao local, estava tomando corpo uma visita guiada com a participação do grupo de Teatro de Carnide. Tive a oportunidade de conhecer todo o museu e sua história, intercalando a narrativa da guia com dramatizações que fizeram da visita uma experiência tão profunda e intensa, que eu precisaria de outro post para descrever, pois gastei, ao todo, entre 3 e 4 horas imersa naquele edifício, que, metricamente falando, nem é tão grande assim.

Voltando minha atenção para a exposição, esta traz os diferentes (e poderia até dizer antagônicos) pontos de vista de dois grandes fotógrafos: um suíço, Peter Schulthess, que aborda uma perspectiva mais técnica, mostrando os ambientes prisionais dos 7 estabelecimentos visitados de forma crua e completa, com clareza e riqueza de detalhes; e um português, Luís Barbosa, que opta por um jogo de sombras e luzes, utilizando-se do preto e branco em todo o seu acervo para levar ao público uma pequena (e eficiente) amostra do sentimento de se estar preso.

Olhando para as fotografias de Peter Schulthess, irracionalmente, eu reagi, a priori, com um sentimento de decepção que me deixou inquieta e pensativa. As fotos estavam incrivelmente bem feitas, mas faltava dor. Parecia que eu havia ido ali buscando uma extensão da aula à qual assisti pela manhã, com o intuito exclusivo de ver as piores condições que um estabelecimento prisional é capaz de oferecer a um indivíduo: as condições que o meu país costuma oferecer. As condições que as prisões da Europa não iriam me oferecer naquele momento.

Algumas das imagens dos quartos dos encarcerados me fizeram lembrar de fotos de Hostels mais acessíveis, que eu costumo ver no início das listas do Booking: simples, mas habitáveis, quando não se faz questão de nenhuma sofisticação ou privacidade. Onde estavam as celas minúsculas e imundas? Onde estava a falta de boa iluminação, a falta de humanidade, o completo improviso, talvez os ratos? Mas, mais importante: de onde vinha minha necessidade de ver isto nas fotos?

Fitando, então, as fotografias de Luís Barbosa, dispostas numa projeção que pisca rápido o suficiente para causar no espectador toda a sorte de inquietação e desconforto possível, num contraste de sombras em preto e branco que se intercalam entre barras de ferro, silhuetas, sistemas de segurança, rabiscos nas paredes, imagens bíblicas, pornográficas, etc.; eu achei a minha primeira resposta. A dor estava ali, sim, porque ela sempre está ali, por toda a parte; ela só precisava ser retratada.

A dor é inerente à falta de liberdade, à falta de convívio familiar, à falta de conforto, à falta de trabalho, de lazer, de amigos, de amores, ao sentimento de culpa. A dor é inerente aos estabelecimentos prisionais, porque eles foram feitos para isso, eles foram feitos para comunicar ao indivíduo que ele está sendo punido, independentemente das melhores ou piores condições que as estruturas físicas ofereçam aos seus encarcerados. Um dos fotógrafos a quis fotografar, enquanto o outro despiu aqueles edifícios de humanidade (porque a dor é viva e humana) e retratou-os em sua nudez, mostrando-os como eles são, e não como parecem ser aos olhos de cada preso.

A grande diferença é que, de lá do país de onde eu venho (que, diante dessas reflexões, mostrou uma realidade que passou a parecer de um plano até fora do terrestre), o significado valorativo de dor, violência institucional e desumanidade parece ser tão diverso deste, por estar atrelado a um sofrimento tão mais intenso, que as estruturas das prisões europeias seriam incapazes de proporcionar aos seus apenados. Eu buscava irracionalmente enxergar essa intensidade nas fotos, porque ela é o que me é comum; porque, nas prisões, obrigatoriamente (segundo crenças que, eu não percebo, mas que ainda estão enraizadas na minha cabeça), ela é quem deve figurar nesse contexto. Há um Abismo Axiológico (ADEODATO, João Maurício) bem aqui, mas ele parece transponível. Eu entendi a raiz do meu sentimento de decepção.

Dando continuidade, logo após a visita, eu descobri que aquele projeto fotográfico iria culminar, na semana seguinte, em uma conferência internacional denominada “Prisons in Portugal and Europe: Regimes of Detention and Monitoring of Regimes”; mais uma oportunidade de continuar explorando e expandindo todo aquele cenário reflexivo que minha mente vinha montando.




Foi daí que, no primeiro dia de intervenções, apesar de ter chegado apenas após o almoço, porque estive em aula pela manhã, comecei a ter contato com informações sobre o sistema carcerário português e suíço, que me fizeram, espontaneamente, olhar ainda mais fundo, e com muito mais perplexidade, para a revoltante realidade brasileira, que se pauta, histórica e atualmente, ainda, na premissa da imprescindibilidade de imposição de um “Hard Treatment” (DUFF, Antony) para que a comunicação da Punição se estabeleça.

Sei que podem ser levantados inúmeros argumentos sobre o quão enorme e o quão pobre o Brasil é para ser comparado a Portugal e, sobretudo, à Suíça. Mas, em termos de densidade carcerária, nada explica a discrepância, nada explica razoavelmente o encarceramento em massa e as miseráveis condições às quais nossos presos são submetidos. E eu também não pretendo me prestar ao Relativismo ou a nivelar o Brasil “por baixo”, para ser benevolente e me satisfazer com uma condição de “menos pior”. Talvez seja justamente esse o problema de nós brasileiros e do nosso sistema: relativizar nossa condição precária e compará-la sempre ao que é pior do que ela, para sentir o conforto de uma ilusória superioridade; ao invés de nos espelharmos nos países que, não obstante suas próprias falhas (que, por óbvio, também existem, e era justamente isso que estava sendo exposto e debatido pelos palestrantes ali), parecem já ter uma noção menos neandertal de Garantias e Direitos Humanos. (E não, esses países inspiradores não incluem os Estados Unidos da América, com a maior população carcerária do Globo).

Perdoem a inevitabilidade das comparações e críticas que faço ao Brasil. Mas, ter conversado com um dos conferencistas, no segundo dia de intervenções, João Nataf, secretário do Subcommittee on Prevention of Torture (SPT), e ouvir que as últimas recomendações feitas pelas Nações Unidas, através do subcomitê, foram recebidas pelo país (que, ironicamente, é signatário do OPCAT - Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura), porém não atendidas ou implementadas por motivos de “esta não é uma prioridade do Governo atual”, revolta-me. Alguém me diga, por favor, quais são as prioridades desse Governo, afinal? A que (ou a quem) ele se presta? Eu sei que a situação já estava posta à mesa muito antes de 1º de janeiro de 2019, mas quem senta na ponta sabe que deve pagar a conta.

Pois bem, voltando um pouco (e prestes a encerrar esse texto megalômano que ninguém lerá na íntegra), um dos melhores momentos da Conferência foi quando, ao final do primeiro dia, tivemos a oportunidade de descer ao piso da exposição de fotos, acompanhados pelo fotógrafo Luís Barbosa, para explorar a sua boa vontade em responder a nossos questionamentos e curiosidades. E foi quando eu prestei um pouco mais de atenção a esta foto:


Essa fotografia traz a imagem de um espelho, em que se pode perceber uma grande distorção no reflexo do quarto que ele representa. Assim que vi esse clique, eu imaginei que se tratava de um espelho comum, talvez tão velho que o vidro teria formado gota (já que aprendi em Química, no Ensino Médio, que isso pode acontecer), gerando essa ondulação que o fotógrafo instintiva e propositadamente capturou.

Mas, a uma segunda vista, de frente para a mesma imagem que eu já houvera fitado no fim de semana anterior, visitou-me uma dúvida: como é permitido, aos presos, o acesso ou manuseio de espelhos? Não se pode negar que espelhos, quando quebrados, são uma arma em potencial. Isso não colocaria em risco a segurança e a integridade física dos apenados? E, sendo proibidos os espelhos, como os presos teriam acesso à sua própria imagem? E como, não tendo acesso à própria imagem, não estar-se-iam sujeitando a uma quase total “despersonalização”?

Não me contive e aproveitei a oportunidade dada pela ocasião, indo questionar Luís Barbosa, que, muito atenciosamente, explicou-me que aquele espelho, na verdade, era de um material plástico, semelhante aos brinquedos de crianças; justamente como forma de evitar o risco que o vidro poderia representar num ambiente celular. Olhado de frente, o espelho refletia a sua imagem, mas, mudando-se o ângulo, eram percebidas as perturbações no acrílico, como a ondulação que ele conseguira retratar. 

Dizem que a ignorância é uma benção. Eu nunca antes havia parado para pensar na falta de dignidade e de humanidade que ser privada do meu próprio reflexo pode representar. O quão cruel e enlouquecedor seria não poder me reconhecer. E, de uma forma ou de outra, as pessoas encarceradas já se submetem automaticamente a isso, a essa perda da própria identidade. Qual é a dureza que ainda precisa ser acrescentada a esta?

É, crianças. Posso mudar de opinião algum dia, ou meu país pode me fazer mudá-la também. Mas acho que, se eu fosse hoje presidiária no Brasil, defenderia a premissa do “bandido bom é bandido morto”, porque eu, sem qualquer dúvida, preferiria mesmo a morte