terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Um sanduíche pra tantos problemas

Estive lembrando hoje de uma inquietação antiga. Não faz muito tempo, eu morava em Nazaré da Mata e vinha todos os dias para Recife assistir aula. A viagem era longa por causa do trânsito (de casa até a faculdade, gastava 2 horas e 30 minutos), mas a paisagem, tão bela, trazia uma quietude ímpar que aliviava o pesar e o cansaço. Pouca gente sabe a sensação de viajar na madrugada. Sair de casa no escuro (4h50 ainda parece noite) e ver o Sol nascendo, refletindo na paisagem, esbranquiçada por aquele vapor suspenso que restou da noite fria... Para quem faz essa viagem de ônibus interurbano, indico meu trecho predileto: na altura em que o motorista sai do trajeto e se dirige a Tiúma para seguir a Camaragibe. Valia a pena abrir os olhos nesse trecho, mesmo quando eu tinha virado a noite estudando para as provas, só para dar uma espiadinha, porque esse cenário fazia com o meu humor o que nenhuma torta de morango consegue fazer. Hehehe... E, para me ajudar a aguentar essas viagens, minha mãe, todos os dias, às 4h30, acordava e preparava meu café da manhã e uns sanduíches para eu comer na volta. Eram dois e, ela não sabe, mas eu só comia um. 

Nesse período, eu só conhecia um único trajeto para a Faculdade de Direito do Recife: atravessando pela Avenida Conde da Boa Vista. Uma caminhada de 2 minutinhos que definia o meu humor do dia. Era esse trechinho curto, naquelas ruas sujas e mal cheirosas, que determinava como eu me sentiria pelo resto da manhã. 

Acontece que, para quem tem a infelicidade de andar por essas ruas, algumas cenas são impossíveis de não serem percebidas. Alguns moradores de rua, em sua maioria crianças, se dispõem pelas calçadas, em colchões velhos ou papelões, onde passam a noite. Aquela noite, sabe, que eu tinha dormido quentinha na minha cama fofa em Nazaré da Mata, debaixo do teto seguro do meu quarto, com meus dois travesseiros? É, aquela noite, eles tinham virado sob a lua, olhando para as estrelas (isso até soa romântico, mas não é), com frio, no desconforto do chão, sem qualquer proteção, à mercê da própria sorte, apelando para que não chovesse... E continuavam ali pela manhã, como parte do cenário urbano, mas invisíveis para o Estado, até sendo tidos como um incômodo, um defeito na paisagem que precisa ser removido, mas não necessariamente consertado. 

Se eu tinha saído de casa com algum problema na cabeça, essa cena me fazia parar para refletir sobre a relevância das minhas preocupações. Então, eu agradecia a Deus por ter problemas tão ínfimos e, sendo suficientemente egoísta, sentia de volta minha tranquilidade, enquanto repousava um dos meus sanduíches no colchão de alguma das crianças: a sortuda que teria café da manhã naquele dia. 

Como se encontrar alguém num estado pior que o meu fosse motivo para alegria. 

Mas, se eu tinha saído de casa feliz e carregado comigo aquela paz transmitida pela paisagem da viagem, ao me deparar com esse cenário hostil, sentia um peso na consciência que roubava meu bom-humor, por me mostrar o quão injusto e vergonhoso era eu ter tanto e outra pessoa, tão digna dessa plenitude quanto eu, não ter nada. Então, eu dividia o que eu tinha, abrindo mão de um dos meus sanduíches. 

Como se 1 sanduíche fosse capaz de acabar com a fome do mundo.

Em uma dessas passagens, a que mais me chocou, uma criança estava acordando enquanto eu atravessava a rua. Ainda com os olhos fechados, ela foi se espreguiçando, tateando o papelão em que estava deitada e, como um cão, farejando e lambendo-o, até encontrar o que queria, seu café da manhã: cola. Nunca encontrei palavras que descrevessem o que essa cena representou para mim. Em Nazaré, essa realidade nunca me tinha sido tão próxima, tão palpável... 

Cheguei a comentar sobre essa inquietação com alguém e essa pessoa sugeriu que eu mudasse meu trajeto: "passa por outra rua". Não sei se foi o caso de quem me deu esse conselho, porque não consigo lembrar quem me disse isso, mas lidar com pessoas completamente alheias a essa realidade, limitadas ao conforto do ar-condicionado de seus carros, acabou me deixando profundamente aborrecida. Eu não queria ter que ignorar os fatos, eu queria alterá-los. Esse é o retrato da pobreza, um ato de violência praticado pelo Estado que, de tão comum, parece ser normal. Então, torna-se mais fácil desviar da "pedra no meio do caminho" já que se considera natural que ela exista ali.

É terrível me sentir de mãos atadas. Eu sei que poderia levar uma padaria inteira para alimentar a Conde da Boa Vista, mas isso não acabaria com a fome. É impossível botar todo mundo no colo e levar para casa também; isso nunca resolveria o problema da falta de moradia. Não quero mais falar de caridade, quero falar de mudança. Talvez seja uma pretensão muito ambiciosa ou muito ingênua da minha parte querer modificar essa realidade. Mas, como se coloca esse plano em prática, afinal?