quarta-feira, 21 de julho de 2021

“And inside the peach there's a stone”

“While he writes, I feel as if he is drawing me; or not drawing me, drawing on me — drawing on my skin — not with the pencil he is using, but with an old-fashioned goose pen, and not with the quill end but with the feather end. As if hundreds of butterflies have settled all over my face, and are softly opening and closing their wings. 

But underneath that is another feeling, a feeling of being wide-eyed awake and watchful. It's like being wakened suddenly in the middle of the night, by a hand over your face, and you sit up with your heart going fast, and no one is there. And underneath that is another feeling still, a feeling like being torn open; not like a body of flesh, it is not painful as such, but like a peach; and not even torn open, but ripe and splitting open of its own accord.


And inside the peach there's a stone.”


Lembro-me do dia em que me deparei com essas palavras atribuídas a Margaret Atwood, e do instantâneo estalar que elas me causaram. Não que eu estivesse vivendo qualquer cenário semelhante naquela altura, qualquer sensação de estar sendo analisada (ou desenhada) por alguém; mas a intensidade das palavras e a forma penetrante como, ao final delas, Grace desnuda uma pedra dentro de si, fizeram-se desconfortavelmente familiares para mim


Recentemente, entretanto, senti-me assim: sistematicamente analisada. Não como alguém que se quer avaliar e chegar ao âmago, mas como alguém que se quer desenhar, que se quer pintar, por algum vão passatempo. E há várias maneiras de se pintar, por isso são poucos os artistas cuja técnica eficiente e suficientemente captura essências. A esmagadora maioria se limita à capa, sobretudo porque é apenas isso que se quer representar/projetar na obra, com perfeição e fidelidade ao que se vê no mundo objetivo. O que se busca, na verdade, é impressionar.


Aqui eu abro um parêntese mental para pensar em um microscópio eletrônico de varredura… É engraçado como as pessoas querem descobrir o que elas não conseguem ver através da potencialização do sentido da visão apenas. Técnicas e tecnologias são constantemente desenvolvidas, por cientistas, artistas, ou simplesmente toda a sorte de Tomés desse mundo, para se conseguir chegar às “nanoescalas”; como se aquele sentido (da visão) fosse o único capaz de enxergar.


E, por muitos anos, isso me gerou um incômodo tal que só há pouco tempo eu consegui compreender: o incômodo de perceber que, para algumas pessoas, a arte sempre será puramente estética; o incômodo de me sentir por elas sumarizada, resumida, superficialmente (ainda que delicadamente) analisada. 


Às vezes, simplesmente só se deseja enxergar o raso mesmo: falta vontade. Noutras, ainda que haja intenção de enxergar mais além, não se emprega a energia correta e necessária: falta técnica. E, em mais algumas, está-se tão distraído e assoberbado pela sua própria imagem, ou por outras imagens que se encontram já fortemente rascunhadas na mente, que os olhos e todos os demais sentidos traem o instinto da busca e fazem o artista se enganar: falta aqui autoconhecimento. Só se é capaz de pintar a essência do outro quando se conhece verdadeiramente a própria essência, porque apenas assim é possível não confundir o que se vê em si com o que se vê/busca na outra pessoa. Acredito que esta última tenha sido a principal falha do artista mais recente que tentou me debulhar; ainda que eu perceba todas as 3 presentes. 


E lá está: por mais intensa que seja a energia/vontade usada para rasgar e abrir a carne desse pêssego que se deseja pintar-analisar, dentro dele há ainda, sim, uma pedra. Irremovível. Que, por sua vez, demanda ainda mais empenho para se conhecer o interior. Entretanto, embora aquilo já seja suficientemente dilacerante de  se admitir, esta é que foi a minha conclusão mais recente: sinto que as pessoas esperam de mim o oposto do que lhes apresento. Elas querem a pedra por fora, e o desafio previsível de encontrar o pêssego dentro dessa cápsula quase impenetrável. 


E, como se sabe, quando se foge do que é expectável, bem como quando se retira do outro a possibilidade de sentir-se desafiado para chegar ao pêssego, curtir o próprio pêssego se torna desinteressante, como se nada mais houvesse a descobrir ali dentro; ou se torna assustador, como se não se soubesse bem o que esperar à frente, já que aquela, teoricamente, era a surpresa. E assim voltamos para a ilusão de já se conhecer algo completamente desconhecido, por mera falta de autoconhecimento. 


E foi assim, analisando/desenhando alguém que tentava me analisar/desenhar, que eu percebi as falhas do outro que eu não queria cometer na minha própria pintura, e quis eliminar do meu repertório a 3ª falta que mencionei lá em cima (a mais difícil de sanar, diga-se de passagem), e não somente esperar que o outro eliminasse do dele. Comecei a fazer uma terapia e, ainda que já tenha largado aquela obra de maneira inacabada, continua fazendo sentido para mim estar agora buscando conhecer melhor a mim mesma com pensamentos mais bem direcionados. Sinto gratidão ao pensar que tudo isto começou porque eu amo a Arte, e todas as respostas que ela ainda tem para me dar! 

domingo, 7 de março de 2021

10 anos de Debatedeira

Foto comemorativa meramente ilustrativa (2018).
Em Jan/2021, também comemorei 3 anos de formada.

Parafraseando Boaventura de Sousa Santos, na obra Pela Mão de Alice, se todos os desafios nascem de perplexidades produtivas, exercitar as nossas perplexidades torna-se, portanto, fundamental para identificar os desafios que merecem respostas. Quando criei este blog em 2011 (e até muito recentemente), eu acreditava que a escrita era a melhor e talvez a única maneira de realizar tal exercício e de encontrar todas as respostas demandadas pelos desafios resultantes. Precisei de 10 anos para me descobrir equivocada. 

Assim, em 07 de janeiro deste ano, o Debatedeira completou a sua primeira década de existência, e, em meio às adiadas promessas diárias de um post de aniversário, após um 2020 de apenas dois textos publicados aqui (e de um artigo publicado pela Almedina em Portugal - ihuuul!!!), passei a praticar umas sessões de auto questionamento, tentando projetar e compreender o porquê de eu não estar conseguindo escrever. É evidente que a pandemia modificou muita coisa em todo o Mundo, mas eu estava relutante em admitir que a minha capacidade de transcrever pensamentos em palavras pudesse ter sido mortalmente atingida por essa ogiva de insalubridade criativa que o ano passado lançou sobre nós

Eu que, por tantas vezes, desejei o ócio em 2019 (como já tenho desejado este ano também), vi-me presa a ele (sozinha) numa casa durante quase 4 meses inteiros de 2020, descobrindo seus efeitos supostamente deletérios e irreversíveis quando forçadamente imposto ao civil. Entretanto, e muito entretanto, ao final desse matrimônio arranjado pelo coronavírus, percebi que estive sempre enganada; sobre tudo. 

Primeiramente, a experiência com o ócio não me retirou a capacidade de pensar, de sentir, de refletir ou mesmo de escrever, ela me subtraiu a vontade de publicar o que eu produzo mentalmente, de compartilhar as minhas perplexidades com outras mentes, de socializar as minhas opiniões. 2020 foi o ano em que eu mais me dediquei a analisar o mundo material e imaterial ao meu redor, num esforço etnográfico de encontrar respostas aos desafios pelos quais estive passando. Conheci, inclusive, algumas pessoas que me fizeram ruminar sobre quem eu não quero ser, sobre as dúvidas que eu não quero ter, sobre as ansiedades que eu não quero causar. Percebi que, quanto mais me volto para o Mundo, mais me descubro voltada para mim mesma, para me consertar; mas que a recíproca não é verdadeira.

E, quando eu digo que a recíproca não é verdadeira, quero mesmo intencionalmente criar uma ambiguidade para fazer referência a duas constatações: ao contrário da colocação anterior, quanto mais me volto para mim mesma, não me volto mais para o Mundo, eu permaneço em mim apenas; e, estar voltada para o Mundo não é uma garantia de que o Mundo também estará voltado para mim. E esta última parte ficou tão cristalina durante as minhas quarentenas (contando com o meu isolamento profilático obrigatório em outubro e este novo lockdown 2020.1, já se somam 3), mas eu não sou capaz de julgar: descobri que o egoísmo é um instinto de sobrevivência

Dando seguimento, percebo que essa apatia quanto à socialização de ideias e ideais parte também de uma crise de gestão de pensamentos: a partir do processo de clivagem através do qual as reflexões se tornaram gradualmente muito numerosas na minha cabeça, tornou-se cada vez mais difícil/impossível geri-las, organizá-las e esquematizá-las todas. Por que eu iria querer investir todo esse esforço para escrever tanta, TANTA, coisa aqui? Tenho pelo menos umas 40 notas abertas no meu smartphone, com raciocínios, frases ou parágrafos de pensamentos eventualmente construídos porém não plenamente transcritos. E, nessas alturas, isso tem me bastado como exercício das minhas perplexidades.

Por fim, descobri na Quarentena outros prazeres e hobbies que eu não costumava ter: voltei a pintar (agora em aquarela, porque o volume de materiais é bem menor), passei a cultivar plantas (já estou a mulher-samambaia), comecei a trabalhar (estou há 9 meses trabalhando com compliance de regulações financeiras, e me considero bastante workaholic), e até a assistir a filmes e séries... Sinto que encontrei outras formas de canalizar e exercitar produtivamente as minhas perplexidades. A escrita continua sendo minha grande paixão, mas aprendi a ter outros affairs.

Por que razão, então, eu vim hoje assim tão out of the blue escrever algumas linhas depois dessa longa ausência não sentida, com 2 meses de atraso do decenário do blog? Por motivos egoísticos e acadêmicos: ao contrário da minha experiência pessoal com o exterior, que admite simples Notas ou aquarelas e que não se sujeita a avaliações, a minha dissertação de Mestrado precisa ser escrita, e bem escrita; o que me coloca em posição de exercitar tanto quanto necessário o meu poder descritivo. Certamente, meus textos voltaram para ficar. Eis um desafio merecedor (e necessitado) de resposta