quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Solilóquio da Ignorância

Existe algo no saber que apavora. Algo que paralisa. O saber é uma mão desajeitada, de gestos bruscos e golpes corajosos, que desnuda o mundo e o faz vibrar em tons de certeza e lucidez. Tons que a minha retina nem sempre deseja enxergar, mas que irrenunciavelmente o faz, porque é para isso que existe, porque não conhece outra forma de existir. 


Penhascos são altos cumes rochosos, mas também são abismos para quem os olha de cima. Desloco-me de um canto a outro e é a consciência dessa multiplicidade que me causa esses espasmos cerebrais que nos ensinaram a chamar de dúvidas. O conhecimento se agiganta mais e mais à medida que o conheço. E, assim como tudo o que vemos na superfície, também é o saber: quanto mais perto dele estamos, tanto maior é o seu tamanho aparente [mesmo que, como diria meu pai (tão amado), não ocupe espaço algum, nessas massas cinzentas e brancas].


As sinapses que o conhecimento cria vão, então, furiosamente, transformando a mim e à minha liberdade. Então, percebo que já não há liberdade quando a ignorância dá lugar ao saber. Ainda que a ignorância tenha declarado guerra ao livre arbítrio, porque faz surgir um vício redibitório, o conhecimento é o único que me aprisiona às minhas decisões: a responsabilidade de as ter tomado conscientemente é um peso irrenunciável. Assim foi erigido o termo “consentimento”. 


Concluo, então, que a liberdade... ela sequer existe! Conhecer é um ato inevitável de abrir uma ferida que nunca se vai cicatrizar, de seguir um caminho cujo retorno é impossível. E tudo que é impossível impossivelmente será livre, ou libertador. O saber é a verdade, mas a verdade nem sempre é querida; ainda que seja genuinamente necessária.

domingo, 22 de março de 2020

Um

Certa vez, desenvolvi uma conversa silenciosa, profunda e esclarecedora com o Mar, através da qual fui levado a finalmente ser capaz de compreender a logística que rege, e sempre regeu, todas as minhas relações e interações acumuladas ao longo desses meus bem-vividos 35 anos. Foi preciso paciência, claro, e uma forte dose de boa vontade, para estar ali ao longo de tantas horas, já que o Mar tem aquela tendência fatigante à prolixidade, numa construção e reconstrução eterna de frases; atrelada à sua personalidade detalhista, que o leva a sempre pensar em demasia na tentativa inútil de atingir seu ideal de perfeição em cada linha que descreve. 

Pouca gente sabe, afinal, mas é tão somente por causa desse bendito perfeccionismo do Mar que as ondas são formadas: incansavelmente, ele se esforça em reunir suas águas, da costa para o horizonte, com a intenção de amontoar uma crista tão límpida e perfeita, que assim seja digna de permanecer pela eternidade. Entretanto, tão logo percebe que, junto com sua água, está também arrastando para o cume os intrusos e inevitáveis sargaços, algas e peixes (e, há alguns milênios, lixo), que impossibilitam que aquilo seja tão perfeito quanto o seu desejo; ele rapidamente desfaz sua construção, para recomeçá- la, então, deixando que a crista se quebre e que tudo corra de volta em direção à costa. 

É assim, sem cessar suas tentativas, que ele agora me faz oscilar em sua superfície, massageando meus membros e tronco, enquanto mantenho os olhos abertos, com a cabeça imersa nesta água salgada que suporta meu corpo em decúbito ventral. Sinto-me embalado pelo Transtorno Obsessivo Compulsivo deste meu amigo, e lembro com bom- humor o dia em que, enquanto compartilhávamos o nosso cansaço, ele me confidenciou esse segredo; que, à época, até prometi não dividir com ninguém mais. Rimos juntos quando lhe relatei as infinitas e extravagantes explicações que a Ciência procura dar para as suas ondas, desenhadas, na verdade, pelo resultado de um genuíno ócio produtivo. O movimento dos oceanos nunca mais foi o mesmo aos meus olhos, tampouco a minha mania de tentar dar motivo (e controlar) a tudo o que acontece ao meu redor. 

Já são sete horas da manhã e os moradores da Ilha onde vim parar ainda não são capazes de me ver; ou de ver o que parece ter restado de mim, nos vai e vens das frias águas do Atlântico Norte. Devo parecer qualquer coisa como um objeto de pesca, restos de uma rede, de um barco. Sei que não estava na minha melhor forma física quando vim ter com o Mar e acabei me deixando ser trazido até aqui, mas tento, ao menos, pensar que não seria confundido com um filhote de Cetáceo encalhado na costa, e isto basta para confortar a minha autoestima. Assim começo a história da minha vida. E da minha morte.

(O texto foi escrito como capítulo introdutório de uma história a quatro mãos que não mais se pretende ser escrita. Decidi me desfazer dele, publicando-o aqui, como forma de interromper o processo criativo e a expectativa de uma continuação na minha mente. Boa quarentena a todos! Que esta inquietação mental sirva para criar o afeto, não para destruí-lo!)

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Cloud 9

A grande frustração para quem, como eu, gosta de escrever, é a convicção de que nenhum vocabulário é vasto o suficiente para abarcar todos os sentimentos e sensações que o ser humano é capaz de experimentar. 

Quando estamos aprendendo um novo idioma, é comum que tenhamos certas dificuldades para expressar nossas intenções comunicativas. Não temos ainda vocabulário suficiente e é necessário trabalhar e estudar para expandi-lo. O problema em relação aos sentimentos é que esse abismo é intransponível, não há estudo que o reduza. Não se trata de um desconhecimento de expressão linguística, mas de uma ausência total: a palavra não existe. 

Então, na tentativa de reduzir essa frustração, lançamos palavras e adjetivações que não dizem nada sobre o que realmente se sente, mas sobre a impossibilidade/incapacidade de dizê-lo. Uma dessas palavras, talvez a mais comum, é: INDESCRITÍVEL. Palavras como essa são adjetivos que descrevem (ou denunciam), com um só vocábulo, uma ausência de vocábulos compatíveis com o que se quer expressar. Não há, para mim, nada mais metalinguístico do que isto. Nem mais genuinamente frustrante. 

Hoje, lembrei que meu blog fazia 9 anos de existência. Há 9 anos, eu tento transcrever em palavras aqui o turbilhão de sentimentos e inquietações “indescritíveis” que me açoitam ou acariciam a alma. Pesquisei, então, a palavra “indescritível” (e o seu plural) em cada uma das minhas 33 publicações de 2011 até aqui e não a encontrei; o que me leva a experimentar uma breve dúvida entre duas constatações: 1) eu tenho talvez um bom vocabulário que, há 9 anos, vem sendo suficiente para, de fato, descrever as minhas mais indescritíveis sensações, ou; 2) há 9 anos, as sensações que narro aqui não são suficientemente indescritíveis. 

Feitas as contas, torço pela primeira conclusão, mas, em qualquer um dos casos, felizes 9 anos de solilóquios! Felizes 9 anos de textos escritos para serem escritos e não para serem lidos!