sexta-feira, 19 de abril de 2019

Índio, pra que te quero?

Desde 1943, no dia 19 de abril, comemora-se o Dia do Índio no Brasil, em razão do decreto-lei nº 5.540 assinado pelo então presidente Getúlio Vargas. Tenho muitas lembranças de vários 19 de abril na minha infância, e parece-me que essa data nunca passou por despercebida na minha escola. Tínhamos algumas festividades, os adultos nos pintavam, confeccionávamos cocás de papel, colares, ou simplesmente coloríamos figuras representativas. 

Lembro, já um pouco mais crescida, com meus 10 ou 12 anos talvez, no auditório do Colégio Damas Santa Cristina, de um colar com uma grande semente preta que comprei (e que, se calhar, ainda o tenho guardado em Nazaré) das mãos de uma índia na visita de uma tribo em ocasião da Campanha da Fraternidade daquele ano. Eu queria uma lembrança do evento e queria ajudar as tribos de alguma forma. Posso estar confundindo as datas das recordações também, mas tenho a impressão de que, nesse mesmo dia, fiz a leitura de algum texto no palco, porque guardo uma sensação de estar ansiosa naqueles momentos. 

Hoje, mais um 19 de abril, dessa vez passado no país dos colonizadores e sentindo-me crescida demais para as pinturas e cocás, vejo-me coincidentemente estudando para um seminário do mestrado que apresentarei na próxima quarta-feira, debruçada sobre livros e artigos acerca do sistema sancionatório aborígene, jurisdição étnica, violência contra mulheres indígenas, Multiculturalismo, Pluralismo Jurídico, infanticídio indígena, gênero e colonialidade; e percebo, numa reflexão quase automática e obrigatória, que, da minha infância pra cá, pouca coisa mudou em termos de consciência de pluralidade étnica e cultural no meu país. 

Os ameríndios, de modo geral, ainda povoam o imaginário do "homem branco" como um retrato de barbárie, pouca (ou nenhuma) roupa, tintas, contas, ausência de civilidade, e inaptidão para autocomposição de conflitos. E essa é uma visão jurássica e perversamente limitada a respeito de uma cultura coletivista na verdade bastante complexa e desenvolvida; o que prejudica a proteção dos reais interesses e da autonomia desses povos, colocando-os numa equivocada posição de constante necessidade da intervenção do Estado nacional ou das ações missionárias (e suas intenções secundárias).

Em meio ao já consagrado reconhecimento constitucional e internacional dos direitos desses povos, ouvir um "mas pra que esses índios querem tanta terra?", assistir à transferência da responsabilidade de demarcação das terras indígenas da FUNAI para o Ministério da Agricultura pelo atual governo, ou ver a imensa dificuldade de se adaptar uma lei como a 11.340/06 (Lei Maria da Penha) às peculiaridades do contexto aborígene, denuncia a permanência de um centrismo cultural na figura do homem médio Ocidental e de suas políticas e interesses que parece muito distante de acabar. Sem querer generalizar, mas já o fazendo, parece-me que, ainda hoje, nada é pensado para o pleno gozo e aproveitamento de todos os brasileiros, nem mesmo as nossas leis. 

Tenho ainda muito o que estudar e pesquisar sobre o tema antes de formar as minhas opiniões definitivas (as quais evito escrever aqui porque tenho medo de configurar auto-plágio quando for depositar os meus relatórios com essas opiniões repetidas hahaha), mas hoje foi inevitável pensar em como, para muito além de tintas e colares, devemos educar as futuras gerações no sentido de desenvolver, desde o princípio, uma consciência étnica permanente que evite adultos tendenciosos à repetição de certos padrões de comportamento que rechaçam a importância histórico-cultural dessas populações e a imprescindibilidade de respeitá-las. 

Feliz Dia do Índio e boa Páscoa!

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Sobre o Instinto Maior do Rufar dos Tambores


Ultimamente, tenho experimentado toda a sorte de situações acadêmicas que esse mestrado na Universidade de Lisboa é capaz de me proporcionar, toda a diversidade de mentes (e também de corações) que a saída da minha zona de conforto (e da minha Zona da Mata Norte) poderia me oferecer. 

Assim, por esses dias, alguns episódios me fizeram lembrar de um sermão de Luther King que inspirou o meu discurso no Juramento da Ordem dos Advogados do Brasil, há quase 1 ano atrás. Pensei em escrever a respeito aqui e suscitar, em mim, um debate interno sobre Vaidade e, para tanto, fui reler o texto que redigi naquela ocasião; mas que, à época, me recusei a publicar, porque nunca o achei bom ou bem escrito o suficiente.

Acabei decidindo abrir mão do meu perfeccionismo só para compartilhar a reflexão que tenho percebido ser ainda bastante cara a todos nós, operadores do Direito. Segue, então, o texto que li no dia 19 de junho de 2018 no auditório da OAB de Pernambuco.

Senhoras e senhores, muito boa tarde. Minhas saudações. Prometo que tentarei ser breve, ou tão breve quanto a difícil missão de estar aqui me permitir.

Antes de mais nada, queria enfatizar que é um privilégio participar desta cerimônia na condição de oradora da turma, a convite da Presidência da casa, representando meus futuros colegas de profissão.

E é em nome deles, dos mais novos advogados e advogadas do Estado de Pernambuco, que eu inicio a minha fala agradecendo. Agradecendo aos nossos familiares, pais, mães, amigos, professores, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, nos encorajaram e contribuíram para a conclusão dessa etapa tão exaustiva e, ao mesmo tempo, edificante.

Cada um aqui travou, de maneira singular, a sua batalha pessoal diária diante dos incontáveis desafios que o curso de Direito nos impôs, mas, acredito que temos 1 certeza em comum: jamais teríamos superado esses obstáculos e chegado até aqui sozinhos. Portanto, a todos esses nossos incentivadores e, em especial, àqueles que estão neste auditório hoje: Gratidão.

Dito isso e voltando-me, então, aos homenageados da tarde, gostaria de parabenizá-los por terem garantido seus assentos nesta solenidade. Incontáveis foram os degraus acadêmicos, e até mesmo sociais, que precisamos subir (ou derrubar) para estarmos sentados aqui. Incalculáveis as noites em que driblamos o sono e o cansaço, desde o vestibular, até o famigerado Exame de Ordem. Inúmeros os colegas que foram ficando pelo caminho, intermináveis as páginas de conteúdos que fomos levados a ler. E tudo parece estar, enfim, chegando a seu final feliz, nessa cerimônia, a partir de uma promessa que igualmente representa um começo feliz: o compromisso legal da Ordem dos Advogados do Brasil .

Hoje, iremos finalmente transpor a linha tênue que ainda nos separa da Advocacia, a profissão que escolhemos prestar à sociedade. E eu repito, prestar à sociedade, porque, antes de mais nada, a Justiça Social será a principal atribuição profissional que estaremos encarregados de desempenhar agora, defendendo a Constituição pátria, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito e a coerente aplicação das leis, acima de quaisquer interesses privados.

E é diante desse pensamento que eu gostaria de levá-los a apreciar e refletir um pouco sobre uma caracterização trazida por Martin Luther King, um incontornável nome da luta pelos Direitos Humanos.

Em 1968, ano de seu assassinato, King realizou o sermão 'The Drum Major Instinct', traduzido para o português como 'O Instinto Maior do Rufar dos Tambores', segundo o qual, todos os seres humanos teriam um instinto de alcançar distinção diante da coletividade, um desejo de chamar atenção para si, de obter reconhecimento. Todos nós teríamos esse impulso dominante de querer se sentir notado, de querer ser o primeiro, superar os outros e liderar a multidão. É aquela coisa: não basta ser importante, a gente quer se destacar, a gente quer ser elogiado!

Para King, até o nosso primeiro choro como bebê já era um apelo por atenção, um impulso de rufar o tambor mais alto que os demais, assim como quando compramos um carro acima de nossa zona de conforto financeira na tentativa de obter não apenas qualidade no deslocamento, mas destaque nas ruas. Ou quando aceitamos, com bastante vaidade, um convite para discursar para uma turma de advogados recém-formados, igualmente capacitados para estarem aqui no meu lugar.

Brincadeiras à parte, esse parece um instinto humano um tanto perigoso, uma 'faca de dois gumes'. Ao mesmo tempo que esse impulso dominante e competitivo nos coloca em constante evolução pessoal, social e sobretudo profissional, levando-nos a perseguir sempre nosso aperfeiçoamento; ele pode se tornar pernicioso, destrutivo, à medida que nos levaria a subverter ou rechaçar o escopo maior da nossa profissão: a Justiça.

Certa vez, na minha graduação, durante uma aula de Direito Civil, a professora da Casa questionou à minha turma o motivo de estarmos estudando no curso de Direito. A resposta veio rápida de um dos meus colegas: 'estabilidade financeira', sem hipocrisia.

Ela continuou: - Vocês sabem que, no Brasil, temos quase 1 milhão de estudantes de Direito? Vocês acham que isso é muito ou pouco?
- Muito, bastante, né?! meu colega respondeu, recebendo como resposta um novo questionamento:
- E você considera o Brasil um país justo?

E eu pergunto a vocês também: vocês consideram o Brasil um país justo? Acho que a resposta aqui também seria uníssona e unânime. Não.

E a professora concluiu: - Então, meu filho, enquanto o Brasil não for um país justo, nós teremos que continuar formando juristas. Quando nosso país for justo, talvez, aí sim, nós possamos formar Poetas.

Portanto, a Justiça, e não o Reconhecimento Social, deve ser o nosso propósito como causídicos. A Ética, e não o Enriquecimento Financeiro, deve estar no topo das nossas prioridades. A Consciência Coletiva, e não a Vaidade, deve nos levar a advogar em nome de uma causa.

Os elogios, a construção patrimonial, a admiração, serão consequências inafastáveis e inexoráveis da nossa retidão e do nosso empenho, mas que nunca devem ser a mola propulsora da nossa profissão. Caso contrário, se não conseguirmos domar esse instinto vaidoso, pode acabar sendo inevitável deturpar o Juramento solene que estamos prestes a realizar hoje.

Assim, eu gostaria de encerrar a minha fala, trazendo um trecho do sermão de Luther King que mencionei, a respeito do Instinto Maior do Rufar dos Tambores: 'É um bom instinto, se você não distorcê-lo e pervertê-lo. Não desista. Continue sentindo a necessidade de ser importante. Continue sentindo a necessidade de ser o primeiro. Mas eu quero que você seja o primeiro no amor. Quero que você seja o primeiro em Excelência Moral. Quero que você seja o primeiro em generosidade.'

Obrigada a todos e muito boa sorte em nossa caminhada.” 
Analu Peixoto Barbosa, junho de 2018.