quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

UX047: MAD - REC

Escrevi o texto abaixo enquanto tentava suportar 8h de ócio sentada na poltrona 52A do voo UX047: um voo sem sono, sem livros, sem filmes e com muitos e muitos monólogos mentais. Pensei duas vezes antes de publicar, mas, ainda na primeira delas, já havia decidido que sim. Espero incentivar monólogos; às vezes, tudo o que a nossa mente precisa é arrumar um tempo para se ouvir melhor. Vejamos.


Hoje, mais uma vez, deixei Lisboa para trás por um tempinho, mas pisei em solos espanhóis durante uma conexão em Madrid, antes de seguir para o meu destino final de férias: Recife. A capital de Portugal, em termos de coordenadas geográficas, está localizada, no hemisfério Norte, a 9° Oeste, tendo adotado o fuso horário GMT/UTC, o mesmo que marca o meridiano zero em Greenwich.

Quando no país vizinho, entretanto, o relógio precisa ser adiantado em 1h, pois, assim como o restante da chamada Europa central, a Espanha encontra-se no fuso GMT+1. Eu não ajustei meu relógio em Madrid. Na verdade, sequer lembro de tê-lo feito após encerrado o horário de verão europeu, em Outubro. Já me perdi nas contas, mas, nesse exato momento, sobrevoando o Oceano Atlântico, leio no vidro que são 16h40. Apesar disso, os comissários de bordo, já estão servindo o que eu acredito ser o jantar; o que me leva a duvidar desses ponteiros dourados, mas a também pensar que, em algum lugar do Globo, ainda são realmente 16h40, e, em algum outro, como aqui neste avião, 16h40 pode já ser a hora certa para a última refeição do dia. 

Por falar no Oceano Atlântico, uma pessoa que conheci durante esse ano planejava atravessá-lo numa viagem que duraria cerca de 30 longos dias, sem comunicação. Daqui de cima, dessa aeronave, finjo que quase posso ver seu barco lá embaixo, mas ele fica para trás, como todo o restante da imensidão azul, levando cerca de 90x mais tempo que eu para concluir a mesma travessia. Passamos por uma turbulência depois do jantar à luz do Sol e eu penso: espero que haja tosta mista e bons ventos para tocar aquele barco lá embaixo. 

Olhando o meu planeta daqui de cima e pensando que o meu querido avô, com seu medo mortal de aviões, nunca viu (e talvez nunca verá) a Terra desse ponto de vista, senão através das fotos que eu lhe mostro, começo a cozinhar um monte de outros pensamentos verdes

Uma das paisagens que mais gosto de observar (e fotografar) durante minhas viagens é quando o céu forma um extenso, denso, macio e indefectível tapete branco de nuvens, pelo qual a aeronave desfila, no azul infinito, com seus mais de 300 passageiros. De cada uma das 140 janelas deste Airbus (o comissário a quem perguntei fez questão de contá-las porque não sabia responder), vê-se uma paisagem diferente, tem-se um ponto de vista diferente, de um observador diferente, e esse é um conjunto que se repete em cada singular avião sobrevoando o céu neste exato instante. Lá debaixo ainda, imagino vovô olhando para cima e vendo esse mesmo céu, azul e branco, mas em tons de cinza: esse meu céu predileto é o mesmo de um dia nublado e chuvoso para ele, com essas mesmas nuvens densas encobrindo o sol

Tomar nota desse looping mental, que a minha cabeça dá durante essas cansativas 8h de voo, fez-me refletir sobre o quanto as pessoas (não me eximo da contagem) se equivocam e se limitam quando pensam que seu ponto de vista é único e unicamente correto, e se recusam a ver as horas no relógio do outro. Ajustar meu relógio, enquanto em Recife, com a hora de Lisboa não vai mesmo fazer sentido na minha rotina, mas saber as horas de lá vai me fazer entender o porquê de a minha amiga Larissa já estar jantando, quando o céu ainda é claro para mim. 

Tudo isso me faz lembrar de uma música de The Strokes que diz “twenty ways to see the World are twenty ways to start a fight”, e imediatamente volta meu pensamento para um artigo da revista de bordo que li no primeiro voo do dia, a respeito do 1º Natal durante a 1ª Guerra Mundial. Após a noite 24, em que se desejaram feliz Natal e cantaram juntos, à distância, cada qual de suas trincheiras, os soldados alemães e ingleses cessaram as atividades bélicas na manhã de 25 de Dezembro de 1914 e confraternizaram entre si: apertaram as mãos, jogaram futebol, trocaram presentes, tabacos, conversaram... Depois desse acontecimento, as tropas foram proibidas de repetir qualquer ato semelhante de confraternização com os inimigos pelos anos seguintes de guerra.

Pequenos atos de humanidade não deveriam ser negligenciados no conteúdo programático das escolas. Isto faz com que pareçam algo mais extraordinário do que a morte de tantos milhões de seres humanos. E talvez sejam mesmo... afinal, ingleses e alemães estavam ali, de forma tão inédita, sob um mesmo fuso horário. 

Enfim, ter consciência da minha pequenez nesse mundo TÃO vasto e TÃO cheio de diferenças me faz querer ter acesso a cada uma das suas incontáveis janelas (das casas e das almas), de cada uma das 24 formas de contar o tempo, mas também me faz pensar em como, em pleno século XXI, nossas comunicações ainda são tão perturbadas pela falta dessa disposição. Janelas e relógios com vistas e horas diferentes das nossas são irremediavelmente bloqueados pela nossa incapacidade de entendê-los... mas, a vida que siga (e nós que estagnemos).

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

1 Ano Lisboeta Também Tem 365 Dias

Jardim da Estrela, meu lugar predileto de Lisboa (foto tirada ontem)

Ontem completou-se uma translação da Terra desde que cheguei a Lisboa. Ontem, há 1 ano atrás, estava descendo no Aeroporto de Portela e enfrentando meu primeiro “desafio”: transportar mais de 50kg de bagagem (sim, minhas malas eram mais pesadas que eu) até o Uber. 

Com muito esforço de braços pouco habilidosos/musculosos, deitei as malas no carrinho, uma sobre a outra, e, inclinando o corpo para a frente, consegui me deslocar. Alcancei a saída, mas o visor do celular (você vai se acostumar, muito mais rápido do que imagina, a dizer “ecrã do telemóvel” depois de ter que resolver algumas burocracias de telefonia) mostrava que o motorista estava em outra parte. Mapas confusos, eram andares diferentes. 

Apressei o passo e, ao atravessar a rua, o carrinho foi de encontro a um pequeno degrau da faixa de pedestres, e todas as malas vieram ao chão

Ouvi algumas risadas e algumas reações de surpresa ao fundo, mas não ouvi o “deixa-me te ajudar” que eu precisava naquele momento. Tive vontade de chorar, parecia que a aventura mal tinha começado e os primeiros minutos já davam sinais de que sairia tudo errado. Então, lembrei de algumas palavras do meu pai sobre essa minha mania de “chorar por tudo” e de como eu o tinha feito acreditar que eu não era mais aquela mesma menina chorona de 10 anos atrás... Engoli o choro, enquanto lutava contra a gravidade para manejar o peso das minhas malas ridiculamente cheias, e segui, até alcançar o local exato em que o segundo Uber me aguardava (já que o primeiro havia cancelado a viagem em razão da minha demora)

Surpresa agradável foi encontrar aquele gentil e simpático motorista, que me ajudaria com as malas e me levaria para esse mesmo lugar na Estrela que, até hoje, ainda chamo de “casa”

E assim também tem sido esse meu primeiro ano inteiro por aqui... Eu trouxe muito mais do que roupas naquelas bagagens: eu trouxe meu medos, anseios, paixões, sonhos, traumas, e eles, invariavelmente (como também aconteceria se eu estivesse em qualquer outro lugar), desequilibram-se e vêm ao chão. Nem sempre tenho ajuda para reerguê-los, então, aprendi a fazer isto sozinha; mas, com frequência, cruzo com pessoas adoráveis, que fazem essas malas parecerem menos pesadas do que realmente são, ou com pessoas desagradáveis, que parecem rir quando as deixo cair. 

O choro? Decidi que não preciso engoli-lo mais. Nunca gostei mesmo do sabor, mas a verdade é que percebi que ele não é uma amostra grátis da minha fraqueza, mas sim a forma como eu expresso aquilo que muita gente, surpreendentemente, ainda pensa que nem tenho: sentimentos. Chorar é uma busca por consolo, e saber que esse consolo pode vir de nós mesmos, como resultado do raciocínio que o próprio desespero do soluçar entre uma lágrima e outra nos trouxe, é o caminho mais genuíno para o crescimento

Então, com bagagens, pessoas, e muito estudo, tenho construído diariamente a minha Lisboa, desde 18 de setembro de 2018. Quanto ao Brasil... Eu nunca deixei aquele lugar.

sábado, 24 de agosto de 2019

Ergueu, no patamar, 4 paredes sólidas

Ultimamente, tenho tido muita inspiração para escrever (o que não é necessariamente um bom sinal), e avaliado várias discussões mentais minhas que dariam ótimos solilóquios se eu as transcrevesse em publicações no blog. Mas, como estou na reta final do meu 1º ano do mestrado aqui em Lisboa, com uma deadline que parece que vai acabar me deixando dead mesmo, tenho guardado essas inspirações para as páginas dos três artigos que preciso finalizar até 30/09. 

Hoje, entretanto, optei por não evitar o desvio produtivo, porque lembrei da função terapêutica e relaxante que a escrita também desempenha em mim. 

Já faz alguns meses, comecei a me despedir de algumas pessoas que fui conhecendo ao longo desse quase 1 ano aqui em Portugal. Amigos da faculdade, flatmates, pessoas com as quais eu convivi e criei laços de carinho e amizade. A esmagadora maioria da minha turma no mestrado em Ciências Criminais é brasileira: já era previsível que esse momento chegaria. O que eu não previ foi como essas partidas poderiam impactar, de alguma forma, a minha vida. 

Em 2015, na China, uma empresa do ramo da construção ergueu um edifício de 57 andares em menos de 20 dias de obras. Um ano inteiro, como vocês imaginam, então (e como eu também imaginava), é tempo suficiente para construir muita coisa: uma casa, uma empresa, um prédio, uma praça, uma família, uma amizade... mas não é tempo hábil para construir uma vida. E o que ninguém me avisou é que, às vezes, nossas construções podem estar alicerçadas em bases com uma data de validade pré-determinada, e que a gente precisa reconstruir alguns pilares se quiser evitar que o edifício inteiro desabe. 

Diariamente, eu tenho construído um pouco de uma possível nova vida por aqui. Pessoas que vou conhecendo, lugares que vou visitando, eventos e estudos que vão despertando novos interesses profissionais, histórias que vão sendo cruzadas com as minhas... Mas, quando você está longe de casa (e isso eu comecei a perceber desde o meu 1º intercâmbio em Munique), longe de onde você sempre chamou de casa, porque é onde suas raízes permanecem fincadas; é muito difícil recriar raízes tão robustas noutro lugar. Então, você descobre que, em 1 ano, você é capaz de construir laços, e laços fortes, mas que eles nunca substituirão as raízes de que você precisa. 

Essa vida longe de casa parece apenas uma coleção de encontros e despedidas. Um entra e sai de gente, numa obra permanente que me lembra aquela reforma das estações de BRT na Avenida Caxangá em Recife, sem data para acabar. Você acorda, todo dia, disposto a carregar novos tijolos, mas não sabe com quem contar para preparar a argamassa. Não porque não há ninguém à volta, mas porque são obreiros de empreitada, que, num dia, estão na sua obra, e, no dia seguinte, estão sabe lá Deus onde. Zygmunt Bauman, se estivesse vivo, provavelmente incluiria isso no seu amplo conceito de Modernidade Líquida. 

Minha nova flatmate chegou há uns 3 meses. Ela também é brasileira e me disse que a gente não pode esperar que essas nossas obras fiquem prontas tão rápido. 

Foram 26 anos divididos entre Nazaré da Mata e Recife, realidades diferentes, mas próximas, de uma vida que foi sendo construída também aos pouquinhos, com a ajuda de muita gente que entrou e saiu rápido, mas de outras tantas pessoas que entraram e quiseram permanecer ali, ou que estiveram desde o princípio mesmo, por culpa da loteria genética. 

Eu fiz a minha primeira carteira de identidade (sim, já foram várias vias ao longo dessa vida hehe) quando tinha uns 13 anos de idade. Aos 17, tirei meu Título de Eleitor. Em 2016, aos 23, finalmente me habilitei para dirigir automóveis (formalmente não significa materialmente, mas tudo bem rsss). Aos 25, tornei-me oficialmente advogada e tomei a decisão de sair da minha zona de conforto e procurar um mestrado na Europa, sem um plano concreto do que queria a seguir. Não dá para cruzar essa linha e, em 1 ano, querer que tudo aconteça, querer ver novas raízes tão profundas quanto as que permanecem no Brasil, querer uma base bem alicerçada e pedreiros e engenheiros trabalhando comigo sob um contrato  de trabalho sem termo. Seria ideal, mas não condiz com a realidade. E quem mora longe de casa sabe disso. 

Então, às pessoas a quem eu disse que já estava muito bem adaptada à vida em Lisboa: parece que me precipitei. Mesmo depois de 1 ano, tem muita coisa ainda acontecendo e colocando a gente à prova. Às pessoas que mal entraram e já saíram da minha vida: obrigada por terem mexido um pouquinho da argamassa comigo e ajudado a erguer algumas paredes. Às que entraram há bastante tempo ou agora, mas que sabem que tendem a permanecer, mesmo que à distância, por assistência remota: sintam-se sempre em casa e contem comigo nas vossas obras também

Mais uns 26 anos, e, quem sabe, eu já poderei ver algum resultado, seja lá onde estiver!

P.S.: o título do post, dessa vez, é um verso da música Construção, de Chico Buarque, que eu lembrei enquanto escrevia aqui. Não sei se essa é uma informação de amplo conhecimento, mas acho a letra dessa canção particularmente genial, pois todas as suas rimas são feitas com o uso de Proparoxítonas; que correspondem à menor classe de palavras da Língua Portuguesa, se comparadas às Oxítonas e Paroxítonas. Esse homem não ganhou o Prêmio Camões à toa, meus amigos.

P.P.S.: só a título de informação, porque mencionei que me habilitei apenas aos 23 anos no Brasil, essa semana, chegou minha Carta de Condução portuguesa pelos correios. Mas, não se preocupem, friends, ainda não tenho carro, nem cara de pau, nem ossos de ferro para dirigir por aqui rsssss

terça-feira, 18 de junho de 2019

Presídios, Fotografia, Aljube & Espelhos

Quando o assunto é Segunda Guerra Mundial, eu tenho um livro predileto: “O Pianista”, de Wladyslaw Szpilman, que narra todas as crueldades e atrocidades vividas, presenciadas ou sabidas pelo autor em Varsóvia durante os anos de 1939 a 1945.

Como judeu sobrevivente do Holocausto, Szpilman escreveu a obra quase imediatamente após o fim daquelas experiências, ainda sob o efeito traumático e negro que elas lhe proporcionaram, transcrevendo em palavras todas as cenas e sentimentos ainda quentes, sem esperar que o sangue arrefecesse ou que as chagas do mundo iniciassem o processo de cicatrização, publicando “O Pianista” já em 1946. Foi dessa forma que o autor conseguiu transmitir um realismo tão dilacerante e detalhado às suas descrições, que fez do seu livro um relato vivo raríssimo sobre aqueles episódios.

Desde que li “O Pianista”, em 2015, passei a dar mais atenção ao lapso temporal que deixo transcorrer entre um acontecimento relevante e o relato dele, para publicar aqui no blog. Chego a tomar notas no meio da madrugada, quando acordo com qualquer ideia ou frase na cabeça, porque percebi que, de fato, as memórias, e sobretudo os sentimentos que elas desencadeiam, vão perdendo força e detalhes em nossa mente com o passar das semanas. No meu caso, já com poucos dias, faz-se alguma turbidez nas lembranças que me impedem de descrevê-las com o mesmo grau de fidelidade.

Então, é assim, sob o risco de esquecer alguns detalhes ou de não transmitir o que alguns momentos, de fato, representaram para mim, que, diante de um intervalo de 1 mês de preguiça de publicar, mas finalmente munida de uma generosa dose de tempo (não que eu realmente o tenha hoje, mas sabe quando isso é o melhor que você pode fazer já que sabe que não irá estudar?) e boa vontade, eu pretendo descrever aqui (e sem economizar linhas), alguns episódios que se iniciaram no sábado 18 de maio, Dia Internacional dos Museus.

Bom. Para além do mestrado em Direito Penal e Ciências Criminais, eu também tenho feito, aos sábados, um curso de Pós-graduação em Direito e Medicina, na Universidade de Lisboa, que tem me rendido um aprendizado riquíssimo.

Naquele sábado, em especial, tive a oportunidade de assistir à intervenção do Sr. Prof. Duarte Nuno Vieira, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, que, além de inúmeras funções e um currículo brilhante, atua junto à ONU, investigando, periciando e documentando casos de tortura e maus tratos nos presídios do mundo todo. Foi uma aula fantástica, mas, ao mesmo tempo, desconfortável. E a culpa do desconforto não foi do palestrante, das imagens, e tampouco daqueles duros assentos do anfiteatro 6. A culpa foi da verdade.

É difícil encarar a realidade da existência de cárceres em condições tão desumanas, olhar para ela. Você sabe que o elefante branco está na sala, mas ignorá-lo sempre parece mais fácil. Ainda que eu tenha a consciência de que a própria ausência de liberdade que um isolamento celular representa já é uma negativa à natureza da humanidade, é impressionante como alguns países (aqui incluso o Brasil), mesmo passados 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda reduzem seus encarcerados a uma posição animalesca, submetendo-os ao que ultrapassa os limites de uma Pena Privativa de Liberdade (PPL) e se torna uma Pena Privativa de Dignidade.

O professor mencionou as Regras de Mandela, as guidelines que determinam o mínimo aceitável para os estabelecimentos prisionais: altura das celas, largura, comprimento, iluminação, temperatura, condições gerais. Mas, temos aqui dois problemas. O primeiro deles é que essas regras podem ser flexibilizadas, para que se adaptem à realidade de cada país; o que me leva a questionar até que ponto essa flexibilização não tende a relativizar esse mínimo e torná-lo permissivo demais, passando a considerar aceitáveis condições muito aquém das pretendidas. E o segundo e mais preocupante problema é que: essas regras NÃO têm caráter vinculativo, de modo que os países não estão obrigados a obedecê-las; o que dispensa comentários.

Foi então, nesse cenário de desconforto pessoal, que, aproveitando a temática posta e o interesse que ela despertou em mim, eu finalmente escolhi o Museu que visitaria naquele Dia Internacional dos Museus (cuja data, aqui em Portugal, dá acesso gratuito aos visitantes): o Museu do Aljube Resistência e Liberdade, que fica localizado no bairro de Alfama, coração de Lisboa.

O Museu do Aljube ocupa um edifício em que, até 1965, funcionava uma prisão, a Cadeia do Aljube, na qual já estiveram encarcerados, à época da Ditadura Militar, diversos presos políticos e sociais: o cenário perfeito para abrigar uma mostra de fotos dos principais estabelecimentos prisionais de Portugal.



A exposição, intitulada “The Portuguese Prison Project”, havia iniciado as visitações uma semana antes daquele sábado, no Piso 0 do Aljube, e eu estava ansiosa para conhecê-la. Pareceu a oportunidade perfeita. E era mesmo: assim que cheguei ao local, estava tomando corpo uma visita guiada com a participação do grupo de Teatro de Carnide. Tive a oportunidade de conhecer todo o museu e sua história, intercalando a narrativa da guia com dramatizações que fizeram da visita uma experiência tão profunda e intensa, que eu precisaria de outro post para descrever, pois gastei, ao todo, entre 3 e 4 horas imersa naquele edifício, que, metricamente falando, nem é tão grande assim.

Voltando minha atenção para a exposição, esta traz os diferentes (e poderia até dizer antagônicos) pontos de vista de dois grandes fotógrafos: um suíço, Peter Schulthess, que aborda uma perspectiva mais técnica, mostrando os ambientes prisionais dos 7 estabelecimentos visitados de forma crua e completa, com clareza e riqueza de detalhes; e um português, Luís Barbosa, que opta por um jogo de sombras e luzes, utilizando-se do preto e branco em todo o seu acervo para levar ao público uma pequena (e eficiente) amostra do sentimento de se estar preso.

Olhando para as fotografias de Peter Schulthess, irracionalmente, eu reagi, a priori, com um sentimento de decepção que me deixou inquieta e pensativa. As fotos estavam incrivelmente bem feitas, mas faltava dor. Parecia que eu havia ido ali buscando uma extensão da aula à qual assisti pela manhã, com o intuito exclusivo de ver as piores condições que um estabelecimento prisional é capaz de oferecer a um indivíduo: as condições que o meu país costuma oferecer. As condições que as prisões da Europa não iriam me oferecer naquele momento.

Algumas das imagens dos quartos dos encarcerados me fizeram lembrar de fotos de Hostels mais acessíveis, que eu costumo ver no início das listas do Booking: simples, mas habitáveis, quando não se faz questão de nenhuma sofisticação ou privacidade. Onde estavam as celas minúsculas e imundas? Onde estava a falta de boa iluminação, a falta de humanidade, o completo improviso, talvez os ratos? Mas, mais importante: de onde vinha minha necessidade de ver isto nas fotos?

Fitando, então, as fotografias de Luís Barbosa, dispostas numa projeção que pisca rápido o suficiente para causar no espectador toda a sorte de inquietação e desconforto possível, num contraste de sombras em preto e branco que se intercalam entre barras de ferro, silhuetas, sistemas de segurança, rabiscos nas paredes, imagens bíblicas, pornográficas, etc.; eu achei a minha primeira resposta. A dor estava ali, sim, porque ela sempre está ali, por toda a parte; ela só precisava ser retratada.

A dor é inerente à falta de liberdade, à falta de convívio familiar, à falta de conforto, à falta de trabalho, de lazer, de amigos, de amores, ao sentimento de culpa. A dor é inerente aos estabelecimentos prisionais, porque eles foram feitos para isso, eles foram feitos para comunicar ao indivíduo que ele está sendo punido, independentemente das melhores ou piores condições que as estruturas físicas ofereçam aos seus encarcerados. Um dos fotógrafos a quis fotografar, enquanto o outro despiu aqueles edifícios de humanidade (porque a dor é viva e humana) e retratou-os em sua nudez, mostrando-os como eles são, e não como parecem ser aos olhos de cada preso.

A grande diferença é que, de lá do país de onde eu venho (que, diante dessas reflexões, mostrou uma realidade que passou a parecer de um plano até fora do terrestre), o significado valorativo de dor, violência institucional e desumanidade parece ser tão diverso deste, por estar atrelado a um sofrimento tão mais intenso, que as estruturas das prisões europeias seriam incapazes de proporcionar aos seus apenados. Eu buscava irracionalmente enxergar essa intensidade nas fotos, porque ela é o que me é comum; porque, nas prisões, obrigatoriamente (segundo crenças que, eu não percebo, mas que ainda estão enraizadas na minha cabeça), ela é quem deve figurar nesse contexto. Há um Abismo Axiológico (ADEODATO, João Maurício) bem aqui, mas ele parece transponível. Eu entendi a raiz do meu sentimento de decepção.

Dando continuidade, logo após a visita, eu descobri que aquele projeto fotográfico iria culminar, na semana seguinte, em uma conferência internacional denominada “Prisons in Portugal and Europe: Regimes of Detention and Monitoring of Regimes”; mais uma oportunidade de continuar explorando e expandindo todo aquele cenário reflexivo que minha mente vinha montando.




Foi daí que, no primeiro dia de intervenções, apesar de ter chegado apenas após o almoço, porque estive em aula pela manhã, comecei a ter contato com informações sobre o sistema carcerário português e suíço, que me fizeram, espontaneamente, olhar ainda mais fundo, e com muito mais perplexidade, para a revoltante realidade brasileira, que se pauta, histórica e atualmente, ainda, na premissa da imprescindibilidade de imposição de um “Hard Treatment” (DUFF, Antony) para que a comunicação da Punição se estabeleça.

Sei que podem ser levantados inúmeros argumentos sobre o quão enorme e o quão pobre o Brasil é para ser comparado a Portugal e, sobretudo, à Suíça. Mas, em termos de densidade carcerária, nada explica a discrepância, nada explica razoavelmente o encarceramento em massa e as miseráveis condições às quais nossos presos são submetidos. E eu também não pretendo me prestar ao Relativismo ou a nivelar o Brasil “por baixo”, para ser benevolente e me satisfazer com uma condição de “menos pior”. Talvez seja justamente esse o problema de nós brasileiros e do nosso sistema: relativizar nossa condição precária e compará-la sempre ao que é pior do que ela, para sentir o conforto de uma ilusória superioridade; ao invés de nos espelharmos nos países que, não obstante suas próprias falhas (que, por óbvio, também existem, e era justamente isso que estava sendo exposto e debatido pelos palestrantes ali), parecem já ter uma noção menos neandertal de Garantias e Direitos Humanos. (E não, esses países inspiradores não incluem os Estados Unidos da América, com a maior população carcerária do Globo).

Perdoem a inevitabilidade das comparações e críticas que faço ao Brasil. Mas, ter conversado com um dos conferencistas, no segundo dia de intervenções, João Nataf, secretário do Subcommittee on Prevention of Torture (SPT), e ouvir que as últimas recomendações feitas pelas Nações Unidas, através do subcomitê, foram recebidas pelo país (que, ironicamente, é signatário do OPCAT - Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura), porém não atendidas ou implementadas por motivos de “esta não é uma prioridade do Governo atual”, revolta-me. Alguém me diga, por favor, quais são as prioridades desse Governo, afinal? A que (ou a quem) ele se presta? Eu sei que a situação já estava posta à mesa muito antes de 1º de janeiro de 2019, mas quem senta na ponta sabe que deve pagar a conta.

Pois bem, voltando um pouco (e prestes a encerrar esse texto megalômano que ninguém lerá na íntegra), um dos melhores momentos da Conferência foi quando, ao final do primeiro dia, tivemos a oportunidade de descer ao piso da exposição de fotos, acompanhados pelo fotógrafo Luís Barbosa, para explorar a sua boa vontade em responder a nossos questionamentos e curiosidades. E foi quando eu prestei um pouco mais de atenção a esta foto:


Essa fotografia traz a imagem de um espelho, em que se pode perceber uma grande distorção no reflexo do quarto que ele representa. Assim que vi esse clique, eu imaginei que se tratava de um espelho comum, talvez tão velho que o vidro teria formado gota (já que aprendi em Química, no Ensino Médio, que isso pode acontecer), gerando essa ondulação que o fotógrafo instintiva e propositadamente capturou.

Mas, a uma segunda vista, de frente para a mesma imagem que eu já houvera fitado no fim de semana anterior, visitou-me uma dúvida: como é permitido, aos presos, o acesso ou manuseio de espelhos? Não se pode negar que espelhos, quando quebrados, são uma arma em potencial. Isso não colocaria em risco a segurança e a integridade física dos apenados? E, sendo proibidos os espelhos, como os presos teriam acesso à sua própria imagem? E como, não tendo acesso à própria imagem, não estar-se-iam sujeitando a uma quase total “despersonalização”?

Não me contive e aproveitei a oportunidade dada pela ocasião, indo questionar Luís Barbosa, que, muito atenciosamente, explicou-me que aquele espelho, na verdade, era de um material plástico, semelhante aos brinquedos de crianças; justamente como forma de evitar o risco que o vidro poderia representar num ambiente celular. Olhado de frente, o espelho refletia a sua imagem, mas, mudando-se o ângulo, eram percebidas as perturbações no acrílico, como a ondulação que ele conseguira retratar. 

Dizem que a ignorância é uma benção. Eu nunca antes havia parado para pensar na falta de dignidade e de humanidade que ser privada do meu próprio reflexo pode representar. O quão cruel e enlouquecedor seria não poder me reconhecer. E, de uma forma ou de outra, as pessoas encarceradas já se submetem automaticamente a isso, a essa perda da própria identidade. Qual é a dureza que ainda precisa ser acrescentada a esta?

É, crianças. Posso mudar de opinião algum dia, ou meu país pode me fazer mudá-la também. Mas acho que, se eu fosse hoje presidiária no Brasil, defenderia a premissa do “bandido bom é bandido morto”, porque eu, sem qualquer dúvida, preferiria mesmo a morte

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Índio, pra que te quero?

Desde 1943, no dia 19 de abril, comemora-se o Dia do Índio no Brasil, em razão do decreto-lei nº 5.540 assinado pelo então presidente Getúlio Vargas. Tenho muitas lembranças de vários 19 de abril na minha infância, e parece-me que essa data nunca passou por despercebida na minha escola. Tínhamos algumas festividades, os adultos nos pintavam, confeccionávamos cocás de papel, colares, ou simplesmente coloríamos figuras representativas. 

Lembro, já um pouco mais crescida, com meus 10 ou 12 anos talvez, no auditório do Colégio Damas Santa Cristina, de um colar com uma grande semente preta que comprei (e que, se calhar, ainda o tenho guardado em Nazaré) das mãos de uma índia na visita de uma tribo em ocasião da Campanha da Fraternidade daquele ano. Eu queria uma lembrança do evento e queria ajudar as tribos de alguma forma. Posso estar confundindo as datas das recordações também, mas tenho a impressão de que, nesse mesmo dia, fiz a leitura de algum texto no palco, porque guardo uma sensação de estar ansiosa naqueles momentos. 

Hoje, mais um 19 de abril, dessa vez passado no país dos colonizadores e sentindo-me crescida demais para as pinturas e cocás, vejo-me coincidentemente estudando para um seminário do mestrado que apresentarei na próxima quarta-feira, debruçada sobre livros e artigos acerca do sistema sancionatório aborígene, jurisdição étnica, violência contra mulheres indígenas, Multiculturalismo, Pluralismo Jurídico, infanticídio indígena, gênero e colonialidade; e percebo, numa reflexão quase automática e obrigatória, que, da minha infância pra cá, pouca coisa mudou em termos de consciência de pluralidade étnica e cultural no meu país. 

Os ameríndios, de modo geral, ainda povoam o imaginário do "homem branco" como um retrato de barbárie, pouca (ou nenhuma) roupa, tintas, contas, ausência de civilidade, e inaptidão para autocomposição de conflitos. E essa é uma visão jurássica e perversamente limitada a respeito de uma cultura coletivista na verdade bastante complexa e desenvolvida; o que prejudica a proteção dos reais interesses e da autonomia desses povos, colocando-os numa equivocada posição de constante necessidade da intervenção do Estado nacional ou das ações missionárias (e suas intenções secundárias).

Em meio ao já consagrado reconhecimento constitucional e internacional dos direitos desses povos, ouvir um "mas pra que esses índios querem tanta terra?", assistir à transferência da responsabilidade de demarcação das terras indígenas da FUNAI para o Ministério da Agricultura pelo atual governo, ou ver a imensa dificuldade de se adaptar uma lei como a 11.340/06 (Lei Maria da Penha) às peculiaridades do contexto aborígene, denuncia a permanência de um centrismo cultural na figura do homem médio Ocidental e de suas políticas e interesses que parece muito distante de acabar. Sem querer generalizar, mas já o fazendo, parece-me que, ainda hoje, nada é pensado para o pleno gozo e aproveitamento de todos os brasileiros, nem mesmo as nossas leis. 

Tenho ainda muito o que estudar e pesquisar sobre o tema antes de formar as minhas opiniões definitivas (as quais evito escrever aqui porque tenho medo de configurar auto-plágio quando for depositar os meus relatórios com essas opiniões repetidas hahaha), mas hoje foi inevitável pensar em como, para muito além de tintas e colares, devemos educar as futuras gerações no sentido de desenvolver, desde o princípio, uma consciência étnica permanente que evite adultos tendenciosos à repetição de certos padrões de comportamento que rechaçam a importância histórico-cultural dessas populações e a imprescindibilidade de respeitá-las. 

Feliz Dia do Índio e boa Páscoa!

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Sobre o Instinto Maior do Rufar dos Tambores


Ultimamente, tenho experimentado toda a sorte de situações acadêmicas que esse mestrado na Universidade de Lisboa é capaz de me proporcionar, toda a diversidade de mentes (e também de corações) que a saída da minha zona de conforto (e da minha Zona da Mata Norte) poderia me oferecer. 

Assim, por esses dias, alguns episódios me fizeram lembrar de um sermão de Luther King que inspirou o meu discurso no Juramento da Ordem dos Advogados do Brasil, há quase 1 ano atrás. Pensei em escrever a respeito aqui e suscitar, em mim, um debate interno sobre Vaidade e, para tanto, fui reler o texto que redigi naquela ocasião; mas que, à época, me recusei a publicar, porque nunca o achei bom ou bem escrito o suficiente.

Acabei decidindo abrir mão do meu perfeccionismo só para compartilhar a reflexão que tenho percebido ser ainda bastante cara a todos nós, operadores do Direito. Segue, então, o texto que li no dia 19 de junho de 2018 no auditório da OAB de Pernambuco.

Senhoras e senhores, muito boa tarde. Minhas saudações. Prometo que tentarei ser breve, ou tão breve quanto a difícil missão de estar aqui me permitir.

Antes de mais nada, queria enfatizar que é um privilégio participar desta cerimônia na condição de oradora da turma, a convite da Presidência da casa, representando meus futuros colegas de profissão.

E é em nome deles, dos mais novos advogados e advogadas do Estado de Pernambuco, que eu inicio a minha fala agradecendo. Agradecendo aos nossos familiares, pais, mães, amigos, professores, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, nos encorajaram e contribuíram para a conclusão dessa etapa tão exaustiva e, ao mesmo tempo, edificante.

Cada um aqui travou, de maneira singular, a sua batalha pessoal diária diante dos incontáveis desafios que o curso de Direito nos impôs, mas, acredito que temos 1 certeza em comum: jamais teríamos superado esses obstáculos e chegado até aqui sozinhos. Portanto, a todos esses nossos incentivadores e, em especial, àqueles que estão neste auditório hoje: Gratidão.

Dito isso e voltando-me, então, aos homenageados da tarde, gostaria de parabenizá-los por terem garantido seus assentos nesta solenidade. Incontáveis foram os degraus acadêmicos, e até mesmo sociais, que precisamos subir (ou derrubar) para estarmos sentados aqui. Incalculáveis as noites em que driblamos o sono e o cansaço, desde o vestibular, até o famigerado Exame de Ordem. Inúmeros os colegas que foram ficando pelo caminho, intermináveis as páginas de conteúdos que fomos levados a ler. E tudo parece estar, enfim, chegando a seu final feliz, nessa cerimônia, a partir de uma promessa que igualmente representa um começo feliz: o compromisso legal da Ordem dos Advogados do Brasil .

Hoje, iremos finalmente transpor a linha tênue que ainda nos separa da Advocacia, a profissão que escolhemos prestar à sociedade. E eu repito, prestar à sociedade, porque, antes de mais nada, a Justiça Social será a principal atribuição profissional que estaremos encarregados de desempenhar agora, defendendo a Constituição pátria, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito e a coerente aplicação das leis, acima de quaisquer interesses privados.

E é diante desse pensamento que eu gostaria de levá-los a apreciar e refletir um pouco sobre uma caracterização trazida por Martin Luther King, um incontornável nome da luta pelos Direitos Humanos.

Em 1968, ano de seu assassinato, King realizou o sermão 'The Drum Major Instinct', traduzido para o português como 'O Instinto Maior do Rufar dos Tambores', segundo o qual, todos os seres humanos teriam um instinto de alcançar distinção diante da coletividade, um desejo de chamar atenção para si, de obter reconhecimento. Todos nós teríamos esse impulso dominante de querer se sentir notado, de querer ser o primeiro, superar os outros e liderar a multidão. É aquela coisa: não basta ser importante, a gente quer se destacar, a gente quer ser elogiado!

Para King, até o nosso primeiro choro como bebê já era um apelo por atenção, um impulso de rufar o tambor mais alto que os demais, assim como quando compramos um carro acima de nossa zona de conforto financeira na tentativa de obter não apenas qualidade no deslocamento, mas destaque nas ruas. Ou quando aceitamos, com bastante vaidade, um convite para discursar para uma turma de advogados recém-formados, igualmente capacitados para estarem aqui no meu lugar.

Brincadeiras à parte, esse parece um instinto humano um tanto perigoso, uma 'faca de dois gumes'. Ao mesmo tempo que esse impulso dominante e competitivo nos coloca em constante evolução pessoal, social e sobretudo profissional, levando-nos a perseguir sempre nosso aperfeiçoamento; ele pode se tornar pernicioso, destrutivo, à medida que nos levaria a subverter ou rechaçar o escopo maior da nossa profissão: a Justiça.

Certa vez, na minha graduação, durante uma aula de Direito Civil, a professora da Casa questionou à minha turma o motivo de estarmos estudando no curso de Direito. A resposta veio rápida de um dos meus colegas: 'estabilidade financeira', sem hipocrisia.

Ela continuou: - Vocês sabem que, no Brasil, temos quase 1 milhão de estudantes de Direito? Vocês acham que isso é muito ou pouco?
- Muito, bastante, né?! meu colega respondeu, recebendo como resposta um novo questionamento:
- E você considera o Brasil um país justo?

E eu pergunto a vocês também: vocês consideram o Brasil um país justo? Acho que a resposta aqui também seria uníssona e unânime. Não.

E a professora concluiu: - Então, meu filho, enquanto o Brasil não for um país justo, nós teremos que continuar formando juristas. Quando nosso país for justo, talvez, aí sim, nós possamos formar Poetas.

Portanto, a Justiça, e não o Reconhecimento Social, deve ser o nosso propósito como causídicos. A Ética, e não o Enriquecimento Financeiro, deve estar no topo das nossas prioridades. A Consciência Coletiva, e não a Vaidade, deve nos levar a advogar em nome de uma causa.

Os elogios, a construção patrimonial, a admiração, serão consequências inafastáveis e inexoráveis da nossa retidão e do nosso empenho, mas que nunca devem ser a mola propulsora da nossa profissão. Caso contrário, se não conseguirmos domar esse instinto vaidoso, pode acabar sendo inevitável deturpar o Juramento solene que estamos prestes a realizar hoje.

Assim, eu gostaria de encerrar a minha fala, trazendo um trecho do sermão de Luther King que mencionei, a respeito do Instinto Maior do Rufar dos Tambores: 'É um bom instinto, se você não distorcê-lo e pervertê-lo. Não desista. Continue sentindo a necessidade de ser importante. Continue sentindo a necessidade de ser o primeiro. Mas eu quero que você seja o primeiro no amor. Quero que você seja o primeiro em Excelência Moral. Quero que você seja o primeiro em generosidade.'

Obrigada a todos e muito boa sorte em nossa caminhada.” 
Analu Peixoto Barbosa, junho de 2018.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Fotógrafos Por Empatia

Descobri que hoje é o Dia do Fotógrafo e, apesar de o meu tempo livre estar muito reduzido essa semana, nunca é tarde para procrastinação, então resolvi escrever algo que sempre tive vontade. 

Eu tenho uma teoria particular sobre pessoas que fotografam bem. E eu não falo de pessoas que aprenderam a fotografar numa sala de aula, com professores, paletas de cores e uma câmera profissional. Eu falo de pessoas que nasceram com uma espécie de “dom natural” para reconhecer uma boa luz e um bom ângulo, independentemente de megapixels. São essas as pessoas que me interessam. Para mim, elas não têm talento algum, elas têm EMPATIA. 

Sei que a definição de Empatia é de conhecimento comum, mas quero, ainda assim, analisar o significado aqui para desenvolver melhor a minha ideia. Numa pesquisa rápida no Google, achei esse conceito: “Empatia é a capacidade de entender ou de sentir o que outra pessoa está experimentando dentro de seu quadro de referência, ou seja, a capacidade de se colocar na posição de outro”. Para a Psicologia, a Empatia pode ser dividida em: Cognitiva e Afetiva. A Empatia cognitiva diz respeito à “capacidade de compreender a perspectiva psicológica das outras pessoas”; enquanto a Empatia afetiva se relaciona com a “habilidade de experimentar reações emocionais por meio da observação da experiência alheia”.

E o que é fotografar bem, afinal? É ir até aquele ponto de vista ideal, que você reconheceu como ideal quando ainda estava a uns 50 metros de distância dele, porque percebeu que, dali, o ângulo e a luz favoreceriam o objeto ou a paisagem que se queria fotografar. Você não precisou ir até lá antes para saber que era o melhor ponto, você já sabia antes mesmo de se deslocar. Isso é a mesma coisa que ter Empatia. Você não precisa sentir a dor do outro para entendê-la, você não precisa ser o outro para ser capaz de enxergar os fatos da sua perspectiva, você não precisa de um transplante de corpos, você não precisa ir até lá. Você só precisa dessa capacidade de se transportar mentalmente do seu ponto de vista para o do outro, de se deslocar mentalmente para outro referencial

Não digo que fotografar bem é uma condição sine qua non para determinar que um ser humano tem Empatia; e nem o contrário, já que acredito que é possível aprender a fotografar com as aulas e os aparelhos corretos. Mas, repara bem nas pessoas que você conhece que sabem tirar boas fotos: elas parecem ter exatamente essa delicadeza humana dentro de si! 

Por isso, nesse Dia do Fotógrafo, além de deixar um beijo pra essas pessoas que são “Fotógrafas por Empatia”, eu queria admitir publicamente que não tem talvez elogio que me derreta mais do que os que são feitos a fotos tiradas por mim, porque, aos meus ouvidos, esse é um elogio ao meu coração! ❤️