sábado, 23 de maio de 2015

Abuso do Papel em Branco Assinado: a fé que o Estado não tutela

No Código Penal pátrio, art. 299, dentro do Título X (Dos Crimes Contra a Fé Pública), há a previsão do tipo penal de Falsidade Ideológica. Ipsis litteris
Falsidade ideológica
Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.
A despeito dessa tipificação, e adentrando no mundo dos fatos, existe a conduta do "Abuso de Papel em Branco Assinado", na qual o agente, de posse de uma folha em branco previamente subscrita, vem a preenchê-la de forma abusiva, inserindo nela declaração falsa ou diversa da que deveria ser escrita. Isto posto, à guisa das particularidades que essa conduta admite, há duas possíveis configurações: a de Falsidade Ideológica, supracitada, e a de Falsidade Material.

Se o agente obtém o papel assinado em branco de forma ilegal, ilegitimamente (seja por furto, ou por apropriação indébita, por exemplo), está-se diante de uma falsidade material. On the other hand, se o agente tem a posse legítima da folha, estando incumbido de seu preenchimento, e o faz mediante abuso da confiança que lhe foi depositada para tal, inserindo nela declarações falsas ou diversas das que realmente deveria lançar, resta configurado o crime de falsidade ideológica ora analisado. 

Sempre que conhecemos alguém a quem atribuímos certa importância e confiança, damos a esta pessoa uma folha em branco assinada por nós mesmos. A pessoa que recebe esse papel, recebe simultaneamente a incumbência de não apenas zelar por ele, mas de preenchê-lo, tendo, portanto, legitimidade para isso. 

De posse legítima de nossa folha, esse agente passa a lançar nela toda a sorte de declaração que lhe foi confiada: preenche com os momentos compartilhados, com as impressões, com os sentimentos, com as palavras ditas, com as atitudes, com as omissões, com as intimidades, com os lugares visitados, com as festas... Preenche com a história dessa particular interação, com tudo que o agente nos oferece enquanto portador desse papel; o que pode durar dias, meses, ou anos. 

Confiar esse documento em branco tão importante a alguém é a primeira formalidade que deve ser cumprida para podermos viver aquilo que o preencherá. Entretanto, a falta de Segurança Jurídica é inerente a essa entrega, visto a imprevisibilidade da conduta que será praticada pela outra pessoa. É óbvio... A gente nunca sabe o que o outro pretende, o que o outro pensa, o que o outro sente. A gente nunca sabe se a vontade de preencher a folha em branco que recebemos do outro com uma gama de coisas boas é a mesma vontade sentida por quem recebe a nossa. 

E aí, acontece o crime de Falsidade Ideológica: não contra a Fé Pública, mas contra a nossa Fé Individual, a nossa confiança; esse bem jurídico que o Estado não tutela...

O sujeito ativo (agente do crime) preenche a folha com informações que não condizem com a realidade sentida. Ele não vive aquilo com você, ele só quer fazer constar, fazer parecer que algum sentimento existe da parte dele, fazer parecer que merece a sua confiança, dar a entender que leva aquela tarefa que lhe foi incumbida a sério. Mas não leva e, no momento oportuno, você descobre aquela conduta "típica" (no Direito Penal, aquela que se subsume a um tipo penal, a um crime) do Abuso de papel em branco assinado. 

Pela observância do Princípio da Intervenção Mínima, que limita o jus puniendi do Estado (ou seja, o seu direito de punir) e do Princípio da Insignificância, que estabelece limites para a tipificação penal (ou seja, para a capacidade de o Direito Penal tipificar condutas irrelevantes) é fácil entender porque o Estado não tutela esse bem jurídico tão particular, nem pune essa conduta tão reprovável do ponto de vista da vítima.

Talvez o grande problema esteja no fato de que, na falta da tutela estatal, criamos uma amostra grátis de Pluralismo Jurídico, um Direito próprio, conferindo a defesa desse bem jurídico (a Fé Individual, a confiança) a quem não tem interesse suficiente em defendê-lo: o outro

É aí que está o nosso erro: confiamos no outro e deixamos essa confiança nas mãos dele, para que ele realize a sua tutela, que zele por ela. Mas essa tarefa deveria nossa. É a nós mesmos que deveria caber o zelo pelos nossos sentimentos, porque só a gente tem interesse suficiente em protegê-los. Ninguém se preocupa com você tanto quanto você mesmo. E isso é uma pena, porque, como já ouvi a minha avó dizer: "o Egoísmo é a chaga da humanidade". 

Mesmo assim, entre o erro de quem confia o preenchimento do papel em branco assinado a quem não merece tal confiança e o erro de quem age de má fé e abusa da confiança que lhe foi depositada, ainda prefiro estar na primeira posição. Porque, por mais que o Direito se abstenha de punir a segunda conduta, a vida pune, nem que seja só com o arrependimento, com a consciência pesada pela traição da confiança alheia, pela oportunidade perdida. E essas punições, infelizmente, costumam ser muito mais severas. 

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