sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Uma Tarde no Guichê 05

Ontem tive minha primeira experiência sozinha no Atendimento da Defensoria Pública da União em Pernambuco e senti uma imensa necessidade de escrever a respeito. Sem dúvidas, ontem conheci o lado mais importante daquele órgão público: o lado de quem busca a Assistência, de quem necessita dela, de quem se sente injustiçado, de quem não tem outra alternativa... Ontem tive a experiência mais humana da minha vida. 

O simples fato de estar no Atendimento já me parecia desafiador desde o princípio. O que eu direi? O que eu farei? E se me perguntarem algo que eu não tenha conhecimento jurídico suficiente para responder? E se eu der alguma informação errada? E se eu esquecer de algum procedimento? Não seria mais uma petição, ofício, ou recurso, que eu poderia passar horas analisando modelos, melhorando a redação, pesquisando jurisprudência, etc. para elaborar. Era ao vivo, em tempo real, em carne e osso. Mas, desafio dado, desafio aceito; por livre e espontânea pressão, já que o Atendimento é obrigatório na experiência de estágio da DPU. 

E, assim, o "Assistido", que, até então, se restringia a um termo usado para identificar a parte autora no Processo de Assistência Judiciária, personificou-se do outro lado do guichê 05. Incrível! São pessoas de verdade. Com suas vidas, emoções, necessidades, inquietudes; são pessoas que aguardam aflitas a minuta das peças de seu processo, as audiências, as decisões... Mas, principalmente, são pessoas que não estão ali "pra ver se cola", mas porque TEM que colar, porque dependem do ganho daquela causa, da concessão daquele benefício, para a manutenção de sua vida. 

Foi assim que recebi uma senhora de bengala que se recuperava de uma cirurgia na coluna e retornava para saber a quantas andava seu processo para receber uma Pensão por Morte em razão do falecimento de seu ex-marido. A situação era complicada e a Defensoria se habilitou ao processo já em fase recursal, tendo a antiga advogada se adiantado e entrado com o recurso à nossa frente, deixando o Defensor de mãos atadas. Recurso negado, PAJ arquivado pela DPU. E a quem caberia dar a notícia? Analu. Que barra, em meu primeiro dia... Mas eu o fiz. E a senhora desabou em lágrimas, em pedidos de ajuda, em desespero. Eu realmente não sabia o que ainda poderia ser feito, nem a Supervisão sabia ao certo... Fiz o que estava ao meu alcance, relatando tudo e passando todas as informações prestadas pela "Assistida" ao defensor do caso pela ferramenta de Retorno. Mas, acabei sofrendo com ela, por esse sentimento de impotência, por não poder dar uma solução ao seu problema...

Durante toda a tarde, eu ouvi reclamações de quem teve o pedido de conversar diretamente com o Defensor negado pela Supervisão, de quem se sentiu enrolado em atendimentos anteriores, de quem queria mais celeridade, de quem estava inconformado... Mas ouvi também palavras carinhosas de agradecimento, incontáveis "Deus lhe pague", "Deus lhe abençoe", pedidos de desculpa pelo trabalho dado (e até uma promessa de "se eu ganhar na Loteria..." hahahaha). Acho que nada será mais gratificante e engrandecedor do que isso foi. E algo que só dependeu de uma dose maior de "boa vontade" da minha parte para acontecer. 

Acho que nunca aprendi tanto em cinco horas, e com pessoas que, aparentemente, não teriam o que ensinar a alguém a quem elas chamam de "Doutora". Elas podem não saber, mas ontem fizeram de uma simples e cansativa tarde de Atendimento uma experiência de aprendizado incrível. A palavra "Assistido" deixou de ser só uma palavra. Voltei para casa realmente mais humana, mais sensível e mais comprometida com o que eu escolhi como palavra de ordem para a minha vida: AJUDAR

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Anatomia da Alma e Psicologia dos Corpos

Eu não quero aqui entrar em méritos religiosos, mas, pra mim, corpo e alma são uma coisa só. A gente não diz "Aquele corpo dança muito bem", ou "Olha aquele corpo atravessando a rua". A gente se refere àquela "pessoa", porque a essência dela toma a forma do seu corpo, ao mesmo tempo que o corpo é a personificação dessa essência. Eu nunca poderia ser eu mesma sem o meu corpo, nem meu corpo continuaria sendo eu mesma se não fosse habitado por minha alma. Eu só SOU, porque tenho (consciência de que tenho) ambos: corpo e alma

Porém, nesses tempos loucos do século XXI, o corpo parece ter se transformado em um mero acessório: moldável, dissociável da alma. O corpo passou a ser um adorno projetável, que se busca modelar constantemente, como se, apesar de necessário, já não fosse mais suficiente para abrigar a nossa essência. Não existe mais aquela resignação, aquele "aceitar a anatomia que Deus deu", entendendo o corpo como um presente do destino, ou um castigo, sei lá. Ao contrário, há uma verdadeira cultura ao corpo: homens e mulheres buscando excelência na moldura, buscando uma forma nova, uma embalagem exclusiva para seu produto. 

Não é algo que eu esteja criticando ou elogiando, só questionando. É que, se eu acredito que o corpo e a alma não podem se dissociar, então, sou obrigada a acreditar também que essa modelagem toda acaba, de alguma maneira, atingindo a nossa essência. A dúvida é se essa busca por uma forma seria motivada pelo fato de a alma estar desconfortável naquele recipiente, precisando, ambiciosamente, adquirir outra embalagem porque seu conteúdo já não é mais o mesmo; ou se, por razões alheias, externas, busca-se mudar a forma para que o conteúdo também se modifique, numa tentativa de elevar a auto-estima, por exemplo. 

Acho a primeira situação absolutamente normal, apesar de reforçar o caráter acessório que o corpo tem tomado. Mas, essa segunda hipótese... Essa segunda hipótese eu não assimilo. 

As mudanças internas são muito mais complexas do que as externas. Você pode fazer um penteado diferente pra mostrar que tem atitude, mas essa atitude não vai passar a fazer parte de você por osmose entre seu eu-lírico e sua escova de cabelo. Você pode se dar de presente uns seios novos, mas a sua auto-estima não vai mudar simplesmente porque você aumentou 2 ou 4 números do sutiã. Seria "tão eficaz quanto mascar chiclete pra tentar resolver uma equação de álgebra": inútil.

Faz umas duas ou três semanas que comecei a malhar e sempre me pego observando as pessoas da academia. Aprendi que isso é um "estudo etnográfico", mas eu só uso esse termo pra diminuir meu sentimento de culpa por ficar analisando a vida alheia mesmo. De toda forma, é curioso ver as pessoas se admirando nas paredes espelhadas, ou olhando seus corpos enquanto fazem musculação. Algumas parecem estar contemplando a beleza daquilo que enxergam, outras parecem estar avaliando os resultados dos exercícios... Não sei.

Mas, qual o mal de elas quererem gostar do que estão vendo no espelho, né?! Acho que isso é sadio, se o conteúdo estiver bem "assentado" na embalagem. Caso contrário, incorre-se no erro de querer mudar, de fora para dentro e às pressas, o que exige uma mudança interna, trabalhosa e demorada. Evite!

Por outro lado, eu também penso o seguinte: pra que serve todo aquele ar que vem dentro do pacote de batatinha Ruffles? Para proteger as batatas. Então, numa analogia bem xexelenta, algumas pessoas poderiam buscar uma forma/embalagem diferente do conteúdo, simplesmente como uma tentativa de auto-proteção. Até porque, hoje, com todo esse culto ao corpo, parece ser um pecado mortal não atender às exigências de mercado; e atender às exigências do mercado funciona como um mecanismo de aceitação social que pode (mas não deveria) influenciar, sim, na auto-estima das pessoas, na essência.

Não sei que linha de raciocínio está correta, mas eu vou continuar o meu Projeto Verão 2015 mesmo pra, finalmente, ganhar as pernas de Sabrina Sato e sambar na cara da sociedade. Então, podem me julgar também! Hahahaha... Talvez as pernas da minha alma não caibam mais nessa circunferência das minhas coxas, como elas mesmas já não cabem mais em algumas de minhas roupas antigas. #VlwFlws

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Um sanduíche pra tantos problemas

Estive lembrando hoje de uma inquietação antiga. Não faz muito tempo, eu morava em Nazaré da Mata e vinha todos os dias para Recife assistir aula. A viagem era longa por causa do trânsito (de casa até a faculdade, gastava 2 horas e 30 minutos), mas a paisagem, tão bela, trazia uma quietude ímpar que aliviava o pesar e o cansaço. Pouca gente sabe a sensação de viajar na madrugada. Sair de casa no escuro (4h50 ainda parece noite) e ver o Sol nascendo, refletindo na paisagem, esbranquiçada por aquele vapor suspenso que restou da noite fria... Para quem faz essa viagem de ônibus interurbano, indico meu trecho predileto: na altura em que o motorista sai do trajeto e se dirige a Tiúma para seguir a Camaragibe. Valia a pena abrir os olhos nesse trecho, mesmo quando eu tinha virado a noite estudando para as provas, só para dar uma espiadinha, porque esse cenário fazia com o meu humor o que nenhuma torta de morango consegue fazer. Hehehe... E, para me ajudar a aguentar essas viagens, minha mãe, todos os dias, às 4h30, acordava e preparava meu café da manhã e uns sanduíches para eu comer na volta. Eram dois e, ela não sabe, mas eu só comia um. 

Nesse período, eu só conhecia um único trajeto para a Faculdade de Direito do Recife: atravessando pela Avenida Conde da Boa Vista. Uma caminhada de 2 minutinhos que definia o meu humor do dia. Era esse trechinho curto, naquelas ruas sujas e mal cheirosas, que determinava como eu me sentiria pelo resto da manhã. 

Acontece que, para quem tem a infelicidade de andar por essas ruas, algumas cenas são impossíveis de não serem percebidas. Alguns moradores de rua, em sua maioria crianças, se dispõem pelas calçadas, em colchões velhos ou papelões, onde passam a noite. Aquela noite, sabe, que eu tinha dormido quentinha na minha cama fofa em Nazaré da Mata, debaixo do teto seguro do meu quarto, com meus dois travesseiros? É, aquela noite, eles tinham virado sob a lua, olhando para as estrelas (isso até soa romântico, mas não é), com frio, no desconforto do chão, sem qualquer proteção, à mercê da própria sorte, apelando para que não chovesse... E continuavam ali pela manhã, como parte do cenário urbano, mas invisíveis para o Estado, até sendo tidos como um incômodo, um defeito na paisagem que precisa ser removido, mas não necessariamente consertado. 

Se eu tinha saído de casa com algum problema na cabeça, essa cena me fazia parar para refletir sobre a relevância das minhas preocupações. Então, eu agradecia a Deus por ter problemas tão ínfimos e, sendo suficientemente egoísta, sentia de volta minha tranquilidade, enquanto repousava um dos meus sanduíches no colchão de alguma das crianças: a sortuda que teria café da manhã naquele dia. 

Como se encontrar alguém num estado pior que o meu fosse motivo para alegria. 

Mas, se eu tinha saído de casa feliz e carregado comigo aquela paz transmitida pela paisagem da viagem, ao me deparar com esse cenário hostil, sentia um peso na consciência que roubava meu bom-humor, por me mostrar o quão injusto e vergonhoso era eu ter tanto e outra pessoa, tão digna dessa plenitude quanto eu, não ter nada. Então, eu dividia o que eu tinha, abrindo mão de um dos meus sanduíches. 

Como se 1 sanduíche fosse capaz de acabar com a fome do mundo.

Em uma dessas passagens, a que mais me chocou, uma criança estava acordando enquanto eu atravessava a rua. Ainda com os olhos fechados, ela foi se espreguiçando, tateando o papelão em que estava deitada e, como um cão, farejando e lambendo-o, até encontrar o que queria, seu café da manhã: cola. Nunca encontrei palavras que descrevessem o que essa cena representou para mim. Em Nazaré, essa realidade nunca me tinha sido tão próxima, tão palpável... 

Cheguei a comentar sobre essa inquietação com alguém e essa pessoa sugeriu que eu mudasse meu trajeto: "passa por outra rua". Não sei se foi o caso de quem me deu esse conselho, porque não consigo lembrar quem me disse isso, mas lidar com pessoas completamente alheias a essa realidade, limitadas ao conforto do ar-condicionado de seus carros, acabou me deixando profundamente aborrecida. Eu não queria ter que ignorar os fatos, eu queria alterá-los. Esse é o retrato da pobreza, um ato de violência praticado pelo Estado que, de tão comum, parece ser normal. Então, torna-se mais fácil desviar da "pedra no meio do caminho" já que se considera natural que ela exista ali.

É terrível me sentir de mãos atadas. Eu sei que poderia levar uma padaria inteira para alimentar a Conde da Boa Vista, mas isso não acabaria com a fome. É impossível botar todo mundo no colo e levar para casa também; isso nunca resolveria o problema da falta de moradia. Não quero mais falar de caridade, quero falar de mudança. Talvez seja uma pretensão muito ambiciosa ou muito ingênua da minha parte querer modificar essa realidade. Mas, como se coloca esse plano em prática, afinal?